sábado, agosto 27, 2011

Redescobrindo a infância de maneira polimorfa

No campo do saber, uma das maiores vitórias do entendimento humano foi conquistada quando Sigmund Freud configurou uma teoria. Um conjunto de conceitos que pretendia explicar o inconsciente, assim como todo evento que embora seja inexplicável pelo viés da razão, logra a implicação de um efeito real cuja origem o indivíduo nada sabe. Conforme a arte da psicanálise, legitimada por Freud, o psiquismo e seus desdobramentos no ser humano tornaram-se algo a ser notado pelo estudo científico. Horrorizando significantemente os companheiros de profissão da época, Freud apresentou ao mundo a sua constatação de que o período da infância é contemplado com a vivência da sexualidade assim como o sujeito adulto. Comentando de forma sintética, os pressupostos freudianos funcionam da seguinte forma: o sujeito nasce adentrando-se numa relação amorosa com a mãe, em que a amamentação representa um vínculo sob a forma do peito, considerado por Freud o primeiro objeto a estimular desejo – a Pulsão – e posteriormente depara-se com a falta deste objeto (“Princípio do Prazer” e “Princípio da Realidade”). Jacques Lacan – um fiel seguidor das teorias freudianas – afirma sabiamente que é importante que falte a falta. A partir da falta, a frustrante imagem do peito, insuficiente para satisfazer ambos os desejos de sobrevivência e prazer, engendra no indivíduo uma cisão da estrutura psíquica que institui o inconsciente, o primeiro contato humano com a realidade. Uma das ações mais utilizadas pelo aparelho psíquico a favor da boa existência é o processo que Freud chamou de “Recalcamento”, isto é, quando o indivíduo transfere um evento, conturbado emocionalmente, do consciente ao inconsciente e simbolicamente “esquece”. Este evento pode ou não retornar à consciência em outras fases da vida, a partir desta premissa é que não evitei a pulsão de comentar a minha impressão sobre a vivência da sexualidade na infância e do filme “Freud, Além da Alma” (1962), dirigido por John Huston. Este é aquele legítimo momento...

“Sinto-me um pequeno perverso polimorfo”.


Quando me posiciono a olhar para trás, o passado apresenta inconsistência e brancos desajustados. Seria possível analisar com tanta verossimilhança as fases que vivemos durante a puerilidade? É mesmo verdade que todos nós somos vítimas de uma configuração social tão categórica como o chamado Complexo de Édipo? Conforme o meu trajeto e mais íntimos desejos, acredito na possibilidade de que vivências da infância sejam “esquecidas”. Seria isso apenas uma decorrência do meu branco pessoal ou este período de descobertas é realmente contemplado com vivências tão além do nossa complexidade? Se me perguntassem, diria que a infância foi para mim um estado sonífero prolongado, em que foram oferecidas oportunidades de amor e perigo. Como cores oferecidas a alguém cego, as atitudes passadas, reconhecidas apenas anos depois, podem apresentar vínculo com a sensação de ter o ego sugado inesperadamente à realidade. Se Freud chama de “Declínio do Complexo de Édipo” esta sensação exatamente, não sei, porém o ato que instaura este ego por volta dos 6 ou 7 anos é descrito de forma a duvidar e/ou estranhar se não estaria aqui a resposta para muito dos nossos sentimentos mais esquizofrênicos. O espírito contestador da teoria freudiana eventualmente existia e por conta da inauguração inusitada dos fundamentos psicanalíticos, Freud é até hoje visto como um médico à frente de seu tempo. Transposta à linguagem cinematográfica de forma a não ser igualada e devidamente instigante, a história dos primeiros eventos da vida de Sigmund Freud desdobra-se com eficácia nas mãos do lendário John Huston.


Para além da alma, inclusive. A percepção do diretor fotografada em brilhante preto e branco conduz o espectador progressivamente pelos obstáculos enfrentados por Freud, retratado com habilidade – sob uma aparência genial e introspectiva por meio do talentoso Montgomery Clift, ao longo de um material que perpassa o conhecimento e a razão. Na hora de lidar com a relação de Freud e seus pacientes, o polido suspense alcança os seus pontos máximos de drama e peca possivelmente em algumas sequências, mas nada que deveria fazer qualquer espectador menosprezar o roteiro, em cujos autores está incluso o não-creditado Sartre. Difícil é não aproveitar ao máximo o exímio uso da realidade e ilusão, ferramentas essenciais na hora de expressar a complexidade psíquica e senão até onírica dos pacientes.




Um diagnóstico essencial e perturbador àqueles que desejam aprofundamento no conhecimento de si mesmo.


sexta-feira, agosto 05, 2011

Desejo - Do Teatro ao Cinema


O autor de uma das peças mais importantes do século representa para a contemporaneidade um marco da cultura americana. Em 1947, Tennessee Williams é consagrado com o Prêmio Pulitzer pela peça “Um Bonde Chamado Desejo”. Em primeiro plano, o texto consiste numa mulher visitando a irmã em New Orleans, onde encontra uma forma de viver oposta a qual está acostumada e pela qual apresenta ao leitor, em desdobramentos de poderosas e viscerais discussões humanas, o tormento que viveu em seu passado. Na leitura de Williams, somos contemplados com uma construção de linguagem particularmente aprimorada, onde realidade e ilusão encontram-se de forma perversa e estimulada senão pela presença de um passado conturbado. O experimento de conhecer a personagem nos coloca quase como analistas frente a um paciente. É possível perceber melhor a sua personalidade por meio de atitudes e apenas um gesto, na dialética entre sofisticação e brutalidade, pode significar um novo desafio na compreensão das consequências de um passado conturbado. Em “Tennessee Williams’ South”, o autor afirma que o objetivo central do texto é propor a compreensão das pessoas delicadas. Indubitavelmente, Blanche DuBois é uma mulher delicada que esconde uma pesada carga de angústia sob a maquiagem de sofisticação e amor pelas artes. Dificilmente podemos passar por esta experiência literária sem notar a influência da vida do autor na sua obra.

segunda-feira, agosto 01, 2011

Entre sucesso e decadência, acordes e amores


HUMORESQUE (1946) provavelmente não funcionaria tão bem sem o poderoso elenco. Esta produção pode ser caracterizada senão como um clássico “camp” do romeno Jean Negulesco. Estruturado no formato novelão, muito bem popularizado pela Warner nos anos 40, o filme conta a história de um romance dividido entre o sucesso e a decadência. O violinista Paul Boray (John Garfield) introduz com algumas linhas o longo flashback que desdobra a história de sua vida. Deixando a família humilde na infância, como um adulto encontrando o sucesso, Boray se apaixona pela afortunada Helen Wright, uma mulher controladora que encontra no álcool a sua fuga da realidade. Uma das primeiras coisas evidentes que podem ser vistas como o ponto pouco convincente da narrativa é o contraste em relação aos dois cenários da trama. A quinta avenida dos luxos e exageros, onde a personagem de Crawford decide por fim a uma vida vazia a qual está submetida, frente ao espaço da família do violinista, onde os cidadãos parecem estar satisfeitos mesmo vivendo uma vida de dificuldades e a recusa do filho pródigo. A exímia direção é o fator que mais atrai a atenção do espectador, na sua montagem impecável e na percepção da música como em nenhum filme já feito pela Warner. O captar da gloriosa ascensão dos acordes de Boray por ser tão memorável quase desculpa a artificialidade no retrato daquelas relações sociais. Se não bastasse a estética brilhante, o sucesso comercial de HUMORESQUE funciona bem como veículo a Joan Crawford, que indubitavelmente recebe um tratamento especial pela câmera, especialmente nas cenas em que aprecia os concertos e, nessas sequências de extremo êxtase, o espectador de longe nota a dedicação emocional da atriz. Pode-se dizer que a redenção praiana de Crawford, intensamente orquestrada por “Liebestod” da composição wagneriana “Tristão e Isolda” e fotografada por Ernest Haller, vale pelo filme!



Um filme necessário aos indivíduos que buscam o cinema enquanto representação musical e que agradará especialmente os fãs de Joan Crawford por ser repleto de sua requintada, mas intensa e poderosa interpretação



....CURIOSIDADE: A homenagem que Madonna faz ao filme com o seu videoclip "The Power of Goodbye"