quarta-feira, novembro 07, 2012

Um tratado de subjetividades jornalísticas




Dentre as tragédias cariocas de Nelson Rodrigues, uma que está profundamente atual em discurso jornalístico é “Boca de Ouro”. A peça em três atos, lançada no princípio da década de 60, traz à tona discussões acerca da instabilidade da fonte, risco ao qual se submete para criar a ideia de que aquele texto se comunica, principalmente, com outras vozes. O testemunho daqueles mais próximos ao assunto que narramos tem importância crucial na formação de opinião do leitor. Nelson Rodrigues vai cutucar tradições, narrando uma história que é por si só outra narração. O escritor vai se aventurar pelos campos da subjetividade com a personagem D. Guigui que – enquanto fonte de jornalistas – conta um pouco das ações de Boca de Ouro, em três versões diferentes que advêm de suas mudanças de humor.


(Imagem famosa da adaptação cinematográfica de Nelson Pereira dos Santos, 1962. Odete Lara no topo de sua sensualidade interpreta a fervorosa D. Guigui.)

Boca de Ouro é o bicheiro de Madureira que seu criador descreve como um personagem tão já pertencente à mitologia suburbana que poderia ser interpretado por dois ou três atores. O escritor José Lins do Rego diz que Nelson Rodrigues consegue parir as mais terríveis criaturas. Isso é ainda mais verdade quando paramos para observar o desdobramento destes personagens por histórias que não se privam de profundidade psicológica. Boca de Ouro tem mais de uma face, ele habita o imaginário de muitos lugares e, na história aqui tratada, é por vezes chamado de “Drácula de Madureira”, “D. Quixote do bicho”, “Deus asteca” até que sua misteriosa morte lhe tira os dentes tão amados, tornando-o um “Boca de ouro de araque”. 


(O sorriso macabro de Jece Valadão como Boca de Ouro não poderá se esquecido...)


Um personagem psiquicamente problemático que viria a esse mundo numa pia de gafieira, crescendo com as desilusões da ausência de uma figura materna terna, sublimando suas frustrações numa busca obsessiva por estabilidade e domínio, simbolizados pelo ouro. O bicheiro tem um caso com a D. Guigui, mas a abandona. A narrativa se introduz com o testemunho da D. Guigui que não sabe da morte de Boca de Ouro, ela o descreve como um cafajeste, mas a morte anunciada a coloca a narrar outra história que romantiza as ações do bicheiro. Por fim, ela já tinha formado também a história de que ele era um “assassino de mulheres”. Os três depoimentos, organizados pelos atos, mostram não apenas cuidado estética por parte do escritor como também a formação de um olhar crítico sobre tradições sociais, provocadas por ele em tragédias plenas de uma sexualidade marginal.




De uma criatura terrivelmente indomada.