Dentre as tragédias cariocas de Nelson Rodrigues, uma que
está profundamente atual em discurso jornalístico é “Boca de Ouro”. A peça em
três atos, lançada no princípio da década de 60, traz à tona discussões acerca
da instabilidade da fonte, risco ao qual se submete para criar a ideia de que
aquele texto se comunica, principalmente, com outras vozes. O testemunho
daqueles mais próximos ao assunto que narramos tem importância crucial na
formação de opinião do leitor. Nelson Rodrigues vai cutucar tradições, narrando
uma história que é por si só outra narração. O escritor vai se aventurar pelos
campos da subjetividade com a personagem D. Guigui que – enquanto fonte de
jornalistas – conta um pouco das ações de Boca de Ouro, em três versões
diferentes que advêm de suas mudanças de humor.
(Imagem famosa da adaptação cinematográfica de Nelson Pereira dos Santos, 1962. Odete Lara no topo de sua sensualidade interpreta a fervorosa D. Guigui.)
Boca de Ouro é o bicheiro de Madureira
que seu criador descreve como um personagem tão já pertencente à mitologia
suburbana que poderia ser interpretado por dois ou três atores. O escritor José
Lins do Rego diz que Nelson Rodrigues consegue parir as mais terríveis
criaturas. Isso é ainda mais verdade quando paramos para observar o
desdobramento destes personagens por histórias que não se privam de
profundidade psicológica. Boca de Ouro tem mais de uma face, ele habita o
imaginário de muitos lugares e, na história aqui tratada, é por vezes chamado
de “Drácula de Madureira”, “D. Quixote do bicho”, “Deus asteca” até que sua
misteriosa morte lhe tira os dentes tão amados, tornando-o um “Boca de ouro de
araque”.
(O sorriso macabro de Jece Valadão como Boca de Ouro não poderá se esquecido...)
Um personagem psiquicamente problemático que viria a esse mundo numa
pia de gafieira, crescendo com as desilusões da ausência de uma figura materna
terna, sublimando suas frustrações numa busca obsessiva por estabilidade e
domínio, simbolizados pelo ouro. O bicheiro tem um caso com a D. Guigui, mas a
abandona. A narrativa se introduz com o testemunho da D. Guigui que não sabe da
morte de Boca de Ouro, ela o descreve como um cafajeste, mas a morte anunciada
a coloca a narrar outra história que romantiza as ações do bicheiro. Por fim,
ela já tinha formado também a história de que ele era um “assassino de mulheres”.
Os três depoimentos, organizados pelos atos, mostram não apenas cuidado estética
por parte do escritor como também a formação de um olhar crítico sobre
tradições sociais, provocadas por ele em tragédias plenas de uma sexualidade
marginal.
De uma criatura terrivelmente indomada.