Jamais alguém esquecerá que o olhar mais cinematográfico já
tem dono. Bette Davis atrai os olhares de espectadores desde quando ainda era
Ruth Elizabeth Davis e pegou fogo por acidente em sala de aula. Todos olhavam sua
estripulia e davam-lhe toda a atenção do mundo. Davis mais tarde comentou que a
tragédia teve significado de glória para ela que jamais se sentiu daquele jeito
e simplesmente amou ser o centro das atenções. Bette Davis não precisa viver
hoje para ainda ser lembrada e ter sua memória celebrada, o mito Bette Davis
Eyes foi tão bem construído que uma diva como ela tende a permanecer maior que
a vida por muito tempo.
Talvez tenha sido Escravos do Desejo (Of Human Bondage, 1934) em que a jovem Davis armou
as garras pela primeira vez, destilando com olhos enormes, sua marca
registrada, e palavras ferinas, o veneno de Mildred. O humilhado personagem de
Leslie Howard sai curiosamente ainda mais fascinado por ela. Depois disso,
Davis cultivou a imagem de víbora que lhe rendeu Oscar em Perigosa (Dangerous, 1935) e muitos
fãs. O exemplo mais emblemático de suas marcas de maldade há de ser Pérfida (The Little Foxes, 1941).
Uma extraordinária pérola de William Wyler que permanece incendiando nossas
mentes por não matar a protagonista, uma verdadeira cobra enviada quase de
profecias bíblicas que assiste, como numa montagem mitológica grega, ao corpo do marido morrendo e triunfantemente se regozija disso. Posteriormente, Bette
Davis recordaria a parceria com Wyler num filme que considero o topo do melhor
de suas interpretações, como uma mulher que não é heroína e não é víbora. É
simplesmente uma mulher que fracassou, cedendo suas energias a desejos e
expectativas de vida que não seriam correspondidas. O resultado disso é
obviamente morte. Foi A Carta (The Letter, 1940) o filme de Davis que tinha o oriente como pano
de fundo para sua história de traição e paixão descobertas. Infelizmente, sua
narrativa fantástica e muitíssimo bem filmada por Wyler não ludibriou os
censores, a punição do final foi imposta a Wyler, pois o público da época não dava
conta da fascinante e maneirada interpretação de Davis a uma adúltera que mata
e engana a instituição judiciária só para o maridinho acreditar nas suas
virtudes de bondades, enquanto morre de tricotar, dentro e fora dos bastidores,
aos acordes de Max Steiner. Apesar de perder a força com o tom de moralidade, a
obra permanece possuidora de uma das melhores concepções enredísticas e é
exaltado com o máximo de beleza de detalhes, diálogos, figurinos,
engendramentos, personagens e elementos de narrativa.
Outras mulheres de Davis foram também assim, desgraçadas
pelas vidas que levavam e envenenadas por se deixar ter demasiada paixão ou ganância. Mulheres que terminaram caídas na lamúria ou mortas em acidentes de
carro. Assim como o poder que configurava todas estas personagens, por outro lado, as heroínas
de Bette Davis ganhavam cada vez mais espaço com filmes como
A Estranha Passageira (Now, Voyager, 1942).
Davis cede pelo homem que ama, cuida dos seres ao seu redor como a si mesma e é
capaz de se transformar por completo para outra pessoa. A vida pessoal de Davis
inevitavelmente se modificou como o patinho feio do filme se tornou cisne.
Davis sempre foi ciente de que não ocupava o palco do padrão estético, mas
evidentemente soube construir sua imagem. Ela não precisa ter a feição ingênua
de Vivien Leigh ou o carão simetricamente perfeito de Garbo para ser bela,
Davis tinha uma carta nas mangas, ela sabia nos fazer crer que era magnífica.
Até em seus filmes de maior trabalho Camp dentro de um gênero exagerado que
ficou conhecido como Grand Dame Guignol, histórias de velhas problemáticas que
outrora foram celebridades, mas caíram no esquecimento, de velhas reclusas
enfrentando dificuldade para se encontrar socialmente, de velhas que tem
nostalgia por sentimentos de desejo carnal, Davis nos fazia piamente crer na
beleza de seus personagens. Ao fim da carreira, quando se dedicou a filmes para TV, uma versão extremamente madura de si aparece contracenando com as novas gerações, como em Difícil Reencontro (Strangers: The Story of a Mother and Daughter, 1979) e demonstra uma lucidez das coisas incrível. A tendência é que cada vez menos pessoas se enganem que Davis era malvada em A Malvada (All About Eve, 1950), com a maior disseminação de seus filmes na rede. Compartilhar é definitivamente a melhor forma de manter em nós a sua memória viva.
She's everything a woman can dare to be.
This is the century of Bette Davis.