terça-feira, novembro 29, 2011

Aos amantes do melodrama e afins

A dinâmica e, mais que isso, incisiva direção de Rainer Werner Fassbinder aborda os elementos da obraprima sirkiana com uma habilidade que os trata muito amadurecidos. Sendo um fã assumido da obra de Douglas Sirk, assim como eu, Fassbinder escolhe a obra máxima “Tudo que o céu permite” (1955) para realizar uma transposição conforme o seu contexto cultural alemão. O amor reprimido pela sociedade, no universo hollywoodiano de Sirk, torna-se mais problematizado em Fassbinder e é mais tarde homenageado com a sutil, tímida, porém honesta direção de Todd Haynes em “Longe do Paraíso” (2002). É indubitavelmente necessário reconhecer a bravura de Fassbinder em recorrer ao racismo, no bojo de outros preconceitos, para uma produção cuja nacionalidade subsidiou uma das maiores opressões culturais da humanidade, os valores nazistas da Alemanha dos anos 30 e 40. Por sinal, Hitler chega a ser mencionado algumas vezes durante o filme. Não seria isso um ponto incisivo a ser pensado?



"O medo devora a alma" (1974) - 
O alvo desta análise é uma produção de 
Rainer Werner Fassbinder


Segue agora o filme pioneiro desta discussão
"Tudo que o céu permite" (1955) 
Sem ele, não seria possível esta belíssima homenagem alemã



...E como mencionado
Todd Haynes idealiza estas discussões para o nosso contexto moderno 
e ainda mais problemático com um pastiche inventivo
"Longe do Paraíso" (2002)




ANGST ESSEN SEELE AUF (lembre-se da pronúncia correta) parte de uma premissa rica em perspectiva, transitando entre o estudo de estáticas expressões faciais e distâncias respeitáveis de seus personagens para reafirmar a relevância transcendente de apenas um amor enfrentando dificuldades. Sirk havia construído, no seu trabalho singular e imagético, uma tese que desvela silenciosamente as várias fantasias – conforme suscita Lacan, construções da realidade – que sustentam o desespero atrás de um superego, administrador dos códigos simbólicos que permeiam os indivíduos no império da cultura e da linguagem. Ou seja, as regras sociais que controlam simbolicamente a vida de homens e mulheres, pressupondo as suas ações comportamentais, cujas decorrências eventualmente oprimem os desejos mais íntimos. Sendo assim, a inspiradora obra de Sirk narra a história de uma viúva adentrando a uma situação de angústia e conflitos existenciais. O processo transformador da personagem é uma consequência da repressão social e simbólica imposta no seu relacionamento afetivo com um indivíduo de classe inferior. Transformada, a suntuosa heroína de Jane Wyman enfrenta a rejeição de todos para encontrar a felicidade. Sirk é genial ao realizar um retrato da classe média, idealizado a partir de cores e figurinos belíssimos, porém carregados de falhas, felicidades aparentes, vazios e – por conseguinte – angústias. 



O casal do melodrama sirkiano traz ao icônico um divino e decadente retratado da classe média

Fassbinder bebe da mesma fonte, traçando uma história de amor entre uma velha alemã e um imigrante árabe. A escolha do título parece cumprir perfeitamente o papel de adiantar ao espectador o tipo de abordagem que cercará o relacionamento dos protagonistas. “O Medo Devora a Alma” atribui inventidade à premissa sirkiana, desenvolvendo um olhar em cima da opressão individual executada pelo contexto social. E também o reverso deste, os instintos e emoções daqueles indivíduos revelando-se agentes de sofrimento e precursores de comportamentos que apontam não apenas os efeitos psicológicos da opressão, mas também as reações individuais implicadas nela como resposta. Se chamada de ato falho, essa resposta poderia ser o medo de eventos indesejados, questões do contexto social, que culminam em deslizes e dificuldades na interação com outros indivíduos. Conforme o filme, os protagonistas vivem um amor repreendido e respondem a esta situação de desgaste com comportamentos que por si só repreendem as suas condições. Fassbinder aborda elegantemente o papel assumido por cada personagem, seja ele o árabe que opta por sublimar suas dores por meio da traição, a velha que se vangloria da atividade sexual e do exuberante objeto matrimonial, os filhos submissos às condições dos próprios casamentos, mas fielmente intolerantes ao relacionamento da mãe. Assim como os imperativos do capitalismo operam as pessoas, as etiquetas do bom comportamento implicam de forma infinita na vida humana e estão nesta obra fassbinderiana, diga-se de passagem, expressas por uma dimensão inteligente e vistosa.


A idílica participação do artista na sua obra.
Fassbinder está em segundo - da esquerda para direita e ao lado de sua esposa
e seus irmãos - assumindo o papel da moralidade social
e reprimindo a relação afetiva de sua mãe


Um filme a ser revisitado inúmeras vezes
para que o seu mote nos traduza melhor
e faça mais efeito.

sábado, agosto 27, 2011

Redescobrindo a infância de maneira polimorfa

No campo do saber, uma das maiores vitórias do entendimento humano foi conquistada quando Sigmund Freud configurou uma teoria. Um conjunto de conceitos que pretendia explicar o inconsciente, assim como todo evento que embora seja inexplicável pelo viés da razão, logra a implicação de um efeito real cuja origem o indivíduo nada sabe. Conforme a arte da psicanálise, legitimada por Freud, o psiquismo e seus desdobramentos no ser humano tornaram-se algo a ser notado pelo estudo científico. Horrorizando significantemente os companheiros de profissão da época, Freud apresentou ao mundo a sua constatação de que o período da infância é contemplado com a vivência da sexualidade assim como o sujeito adulto. Comentando de forma sintética, os pressupostos freudianos funcionam da seguinte forma: o sujeito nasce adentrando-se numa relação amorosa com a mãe, em que a amamentação representa um vínculo sob a forma do peito, considerado por Freud o primeiro objeto a estimular desejo – a Pulsão – e posteriormente depara-se com a falta deste objeto (“Princípio do Prazer” e “Princípio da Realidade”). Jacques Lacan – um fiel seguidor das teorias freudianas – afirma sabiamente que é importante que falte a falta. A partir da falta, a frustrante imagem do peito, insuficiente para satisfazer ambos os desejos de sobrevivência e prazer, engendra no indivíduo uma cisão da estrutura psíquica que institui o inconsciente, o primeiro contato humano com a realidade. Uma das ações mais utilizadas pelo aparelho psíquico a favor da boa existência é o processo que Freud chamou de “Recalcamento”, isto é, quando o indivíduo transfere um evento, conturbado emocionalmente, do consciente ao inconsciente e simbolicamente “esquece”. Este evento pode ou não retornar à consciência em outras fases da vida, a partir desta premissa é que não evitei a pulsão de comentar a minha impressão sobre a vivência da sexualidade na infância e do filme “Freud, Além da Alma” (1962), dirigido por John Huston. Este é aquele legítimo momento...

“Sinto-me um pequeno perverso polimorfo”.


Quando me posiciono a olhar para trás, o passado apresenta inconsistência e brancos desajustados. Seria possível analisar com tanta verossimilhança as fases que vivemos durante a puerilidade? É mesmo verdade que todos nós somos vítimas de uma configuração social tão categórica como o chamado Complexo de Édipo? Conforme o meu trajeto e mais íntimos desejos, acredito na possibilidade de que vivências da infância sejam “esquecidas”. Seria isso apenas uma decorrência do meu branco pessoal ou este período de descobertas é realmente contemplado com vivências tão além do nossa complexidade? Se me perguntassem, diria que a infância foi para mim um estado sonífero prolongado, em que foram oferecidas oportunidades de amor e perigo. Como cores oferecidas a alguém cego, as atitudes passadas, reconhecidas apenas anos depois, podem apresentar vínculo com a sensação de ter o ego sugado inesperadamente à realidade. Se Freud chama de “Declínio do Complexo de Édipo” esta sensação exatamente, não sei, porém o ato que instaura este ego por volta dos 6 ou 7 anos é descrito de forma a duvidar e/ou estranhar se não estaria aqui a resposta para muito dos nossos sentimentos mais esquizofrênicos. O espírito contestador da teoria freudiana eventualmente existia e por conta da inauguração inusitada dos fundamentos psicanalíticos, Freud é até hoje visto como um médico à frente de seu tempo. Transposta à linguagem cinematográfica de forma a não ser igualada e devidamente instigante, a história dos primeiros eventos da vida de Sigmund Freud desdobra-se com eficácia nas mãos do lendário John Huston.


Para além da alma, inclusive. A percepção do diretor fotografada em brilhante preto e branco conduz o espectador progressivamente pelos obstáculos enfrentados por Freud, retratado com habilidade – sob uma aparência genial e introspectiva por meio do talentoso Montgomery Clift, ao longo de um material que perpassa o conhecimento e a razão. Na hora de lidar com a relação de Freud e seus pacientes, o polido suspense alcança os seus pontos máximos de drama e peca possivelmente em algumas sequências, mas nada que deveria fazer qualquer espectador menosprezar o roteiro, em cujos autores está incluso o não-creditado Sartre. Difícil é não aproveitar ao máximo o exímio uso da realidade e ilusão, ferramentas essenciais na hora de expressar a complexidade psíquica e senão até onírica dos pacientes.




Um diagnóstico essencial e perturbador àqueles que desejam aprofundamento no conhecimento de si mesmo.


sexta-feira, agosto 05, 2011

Desejo - Do Teatro ao Cinema


O autor de uma das peças mais importantes do século representa para a contemporaneidade um marco da cultura americana. Em 1947, Tennessee Williams é consagrado com o Prêmio Pulitzer pela peça “Um Bonde Chamado Desejo”. Em primeiro plano, o texto consiste numa mulher visitando a irmã em New Orleans, onde encontra uma forma de viver oposta a qual está acostumada e pela qual apresenta ao leitor, em desdobramentos de poderosas e viscerais discussões humanas, o tormento que viveu em seu passado. Na leitura de Williams, somos contemplados com uma construção de linguagem particularmente aprimorada, onde realidade e ilusão encontram-se de forma perversa e estimulada senão pela presença de um passado conturbado. O experimento de conhecer a personagem nos coloca quase como analistas frente a um paciente. É possível perceber melhor a sua personalidade por meio de atitudes e apenas um gesto, na dialética entre sofisticação e brutalidade, pode significar um novo desafio na compreensão das consequências de um passado conturbado. Em “Tennessee Williams’ South”, o autor afirma que o objetivo central do texto é propor a compreensão das pessoas delicadas. Indubitavelmente, Blanche DuBois é uma mulher delicada que esconde uma pesada carga de angústia sob a maquiagem de sofisticação e amor pelas artes. Dificilmente podemos passar por esta experiência literária sem notar a influência da vida do autor na sua obra.

segunda-feira, agosto 01, 2011

Entre sucesso e decadência, acordes e amores


HUMORESQUE (1946) provavelmente não funcionaria tão bem sem o poderoso elenco. Esta produção pode ser caracterizada senão como um clássico “camp” do romeno Jean Negulesco. Estruturado no formato novelão, muito bem popularizado pela Warner nos anos 40, o filme conta a história de um romance dividido entre o sucesso e a decadência. O violinista Paul Boray (John Garfield) introduz com algumas linhas o longo flashback que desdobra a história de sua vida. Deixando a família humilde na infância, como um adulto encontrando o sucesso, Boray se apaixona pela afortunada Helen Wright, uma mulher controladora que encontra no álcool a sua fuga da realidade. Uma das primeiras coisas evidentes que podem ser vistas como o ponto pouco convincente da narrativa é o contraste em relação aos dois cenários da trama. A quinta avenida dos luxos e exageros, onde a personagem de Crawford decide por fim a uma vida vazia a qual está submetida, frente ao espaço da família do violinista, onde os cidadãos parecem estar satisfeitos mesmo vivendo uma vida de dificuldades e a recusa do filho pródigo. A exímia direção é o fator que mais atrai a atenção do espectador, na sua montagem impecável e na percepção da música como em nenhum filme já feito pela Warner. O captar da gloriosa ascensão dos acordes de Boray por ser tão memorável quase desculpa a artificialidade no retrato daquelas relações sociais. Se não bastasse a estética brilhante, o sucesso comercial de HUMORESQUE funciona bem como veículo a Joan Crawford, que indubitavelmente recebe um tratamento especial pela câmera, especialmente nas cenas em que aprecia os concertos e, nessas sequências de extremo êxtase, o espectador de longe nota a dedicação emocional da atriz. Pode-se dizer que a redenção praiana de Crawford, intensamente orquestrada por “Liebestod” da composição wagneriana “Tristão e Isolda” e fotografada por Ernest Haller, vale pelo filme!



Um filme necessário aos indivíduos que buscam o cinema enquanto representação musical e que agradará especialmente os fãs de Joan Crawford por ser repleto de sua requintada, mas intensa e poderosa interpretação



....CURIOSIDADE: A homenagem que Madonna faz ao filme com o seu videoclip "The Power of Goodbye"



sexta-feira, julho 01, 2011

DELEITE VISUAL

"The Red Shoes", 1948


É provável que seja o filme sobre Ballet mais cultuado na história do Cinema até o contemporâneo e "extrarealista" Cisne Negro. Esta produção riquíssima em cores de Emeric Pressburger e Michael Powell nos brinda, por meio da elegante performance de Moira Shearer como Vicky Page, uma dançarina dividida por dois amores: a dança e o compositor Julian Craster, com uma sessão inequecível e uma discussão muito pertinente.


"Os Sapatinhos Vermelhos" configura uma paixão por esta dança clássica e revela, tanto em repertório como no enredo fílmico, a sua faceta de obsessão e condicionamento à arte. A maior discussão do filme envolve as possibilidade de uma dançarina na sua vida afetiva e nos surpreende apontando uma capacidade que sabemos que existe, aquela de fazer escolhas e pagar um preço alto por isso. A ingenuidade da ascensão de Vicky Page me fez perceber uma qualidade oposta a essa, o processo de conquista muitíssimo valorizado em Cisne Negro, assim como os exageros alucinógenos de Aronofsky que efetivamente limitam o próprio requinte em detrimento ao resultado encontrado aqui nestes vermelhos sapatos, uma obra delicadíssima para aqueles que apreciam deleite visual com conteúdo!


quarta-feira, junho 01, 2011

Marilyn mostra para que veio ao mundo na programação especial do TCM

O primeiro dia do mês de Junho nos perturba todo ano com uma indagação que jamais será perdida: "Afinal de contas, tem como explicar a morte do maior símbolo sexual da história de Hollywood?". Na verdade, o que está nas nossas possibilidades, como apaixonados pelo cinema clássico, é prestar uma homenagem a essa diva e sua exímia beleza. Essas dúvidas, especialmente para entender a angústia que ela viveu no fim dos dias, não serão resolvidas. Fotos com esta ao lado, nos bastidores do último e incompleto filme da atriz, tocam-me profundamente. Os mitos que assombram esta estrela são muitos, assim como os fascinados pelo seu brilho eterno. Seu talento para nos fazer rir está marcado na calçada da fama.

Para homenagear a atriz, o TCM exibirá os seguintes filmes:

"O Príncipe Encantado" (1957)

Uma produção light que nos evoca o entretenimento da década de 50, cheio de cores e super apropriado para uma sessão da tarde clássica. A presença de Marilyn nos encanta, mesmo neste roteiro que deixa um pouco a desejar.


"O Rio das Almas Perdidas" (1954)

Produzido com uma ambientação encantadora, o universo aventureiro deste filme resulta numa clichê e adorável história romanesca. 
Dá uma conferida no aplique da indivídua!


"Como Agarrar um Milionário" (1953)

Este, indubitavelmente, é o mais icônico da seleção. Marilyn e as companhias louváveis de Lauren Bacall e Betty Grable participam de um roteiro muitíssimo bem composto, que massageiam o ego do cinema cinquentista e nos oferece uma obra cômica e efetivamente inesquecível.

"Os Desajustados" 1961





terça-feira, maio 31, 2011

A revolução será registrada: identificando os papéis midiáticos na aplicação de estratégias políticas e as consequências disso no governo de Chávez

The revolution will not be televised. Direção: Kim Bartley, Donnacha Ó Briain. Produção: David Power. Irlanda: Power Pictures, 2003. 74 min. Colorido. Distribuição: Vitagraph Films.

  
Eleito democraticamente, o presidente venezuelano Hugo Chávez foi removido de seu posto por meio de um golpe de estado em abril de 2002. As cenas cruciais do evento, incluindo as imagens produzidas dentro do Palácio de Miraflores, onde Chávez estava detido, estão organizadas no documentário intitulado “A revolução não será televisionada” (Kim Bartley e Donnacha Ó Briain, 2003). Conforme o documentário e os fatos, articulados por meio de narração e linearidade cronológica, os cineastas irlandeses – Bartley e Ó Briain – chegam a Venezuela sete meses antes do golpe com o objetivo de desvendar mitos, rumores e compor uma biografia sobre Hugo Chávez, o herói do povo venezuelano. Para a surpresa dos dois irlandeses, estar no lugar certo, na hora certa, os contemplaria com imagens exclusivas para este documentário, que posteriormente seria premiado em importantes festivais europeus e norte-americanos.

quarta-feira, maio 25, 2011

Nunca existiu um homem como o meu Johnny Guitar

Feito de elementos inusitados para um Western...
JOHNNY GUITAR (Nicholas Ray, 1954) honra o seu legado Cult na composição quase freudiana de seus personagens. Joan Crawford domina a cena na impulsiva personalidade de Vienna e sua rival amorosa Emma, personagem da elogiosa Mercedes McCambridge. Truffaut elaborou o seu espertíssimo conceito a respeito do filme: "A Bela e a Fera dos Westerns, só que com Sterling Hayden no papel da Bela".


sexta-feira, maio 13, 2011

Divina loucura marca a década de 50

"Crepúsculo dos Deuses" é a metalinguagem prima no meio de um século. Da ascendência mortal até a decadência eterna, onde criaturas bebem da cruel fonte do show business. Só podia ser a comunicação do espectador com um verdadeiro cérebro, sim... Pela genialidade e por um bom tempo que acredito no cinema de Billy Wilder, na sua maneira construtora desta linguagem visual que faz incontáveis cinéfilos adicioná-lo aos favoritos.