A dinâmica e, mais que isso, incisiva direção de Rainer Werner Fassbinder aborda os elementos da obraprima sirkiana com uma habilidade que os trata muito amadurecidos. Sendo um fã assumido da obra de Douglas Sirk, assim como eu, Fassbinder escolhe a obra máxima “Tudo que o céu permite” (1955) para realizar uma transposição conforme o seu contexto cultural alemão. O amor reprimido pela sociedade, no universo hollywoodiano de Sirk, torna-se mais problematizado em Fassbinder e é mais tarde homenageado com a sutil, tímida, porém honesta direção de Todd Haynes em “Longe do Paraíso” (2002). É indubitavelmente necessário reconhecer a bravura de Fassbinder em recorrer ao racismo, no bojo de outros preconceitos, para uma produção cuja nacionalidade subsidiou uma das maiores opressões culturais da humanidade, os valores nazistas da Alemanha dos anos 30 e 40. Por sinal, Hitler chega a ser mencionado algumas vezes durante o filme. Não seria isso um ponto incisivo a ser pensado?
"O medo devora a alma" (1974) -
O alvo desta análise é uma produção de
Rainer Werner Fassbinder
Segue agora o filme pioneiro desta discussão
"Tudo que o céu permite" (1955)
Sem ele, não seria possível esta belíssima homenagem alemã
...E como mencionado
Todd Haynes idealiza estas discussões para o nosso contexto moderno
e ainda mais problemático com um pastiche inventivo
"Longe do Paraíso" (2002)
ANGST ESSEN SEELE AUF (lembre-se da pronúncia correta) parte de uma premissa rica em perspectiva, transitando entre o estudo de estáticas expressões faciais e distâncias respeitáveis de seus personagens para reafirmar a relevância transcendente de apenas um amor enfrentando dificuldades. Sirk havia construído, no seu trabalho singular e imagético, uma tese que desvela silenciosamente as várias fantasias – conforme suscita Lacan, construções da realidade – que sustentam o desespero atrás de um superego, administrador dos códigos simbólicos que permeiam os indivíduos no império da cultura e da linguagem. Ou seja, as regras sociais que controlam simbolicamente a vida de homens e mulheres, pressupondo as suas ações comportamentais, cujas decorrências eventualmente oprimem os desejos mais íntimos. Sendo assim, a inspiradora obra de Sirk narra a história de uma viúva adentrando a uma situação de angústia e conflitos existenciais. O processo transformador da personagem é uma consequência da repressão social e simbólica imposta no seu relacionamento afetivo com um indivíduo de classe inferior. Transformada, a suntuosa heroína de Jane Wyman enfrenta a rejeição de todos para encontrar a felicidade. Sirk é genial ao realizar um retrato da classe média, idealizado a partir de cores e figurinos belíssimos, porém carregados de falhas, felicidades aparentes, vazios e – por conseguinte – angústias.
O casal do melodrama sirkiano traz ao icônico um divino e decadente retratado da classe média
Fassbinder bebe da mesma fonte, traçando uma história de amor entre uma velha alemã e um imigrante árabe. A escolha do título parece cumprir perfeitamente o papel de adiantar ao espectador o tipo de abordagem que cercará o relacionamento dos protagonistas. “O Medo Devora a Alma” atribui inventidade à premissa sirkiana, desenvolvendo um olhar em cima da opressão individual executada pelo contexto social. E também o reverso deste, os instintos e emoções daqueles indivíduos revelando-se agentes de sofrimento e precursores de comportamentos que apontam não apenas os efeitos psicológicos da opressão, mas também as reações individuais implicadas nela como resposta. Se chamada de ato falho, essa resposta poderia ser o medo de eventos indesejados, questões do contexto social, que culminam em deslizes e dificuldades na interação com outros indivíduos. Conforme o filme, os protagonistas vivem um amor repreendido e respondem a esta situação de desgaste com comportamentos que por si só repreendem as suas condições. Fassbinder aborda elegantemente o papel assumido por cada personagem, seja ele o árabe que opta por sublimar suas dores por meio da traição, a velha que se vangloria da atividade sexual e do exuberante objeto matrimonial, os filhos submissos às condições dos próprios casamentos, mas fielmente intolerantes ao relacionamento da mãe. Assim como os imperativos do capitalismo operam as pessoas, as etiquetas do bom comportamento implicam de forma infinita na vida humana e estão nesta obra fassbinderiana, diga-se de passagem, expressas por uma dimensão inteligente e vistosa.
A idílica participação do artista na sua obra.
Fassbinder está em segundo - da esquerda para direita e ao lado de sua esposa
e seus irmãos - assumindo o papel da moralidade social
e reprimindo a relação afetiva de sua mãe
Um filme a ser revisitado inúmeras vezes
para que o seu mote nos traduza melhor
e faça mais efeito.