É uma experiência quase transcendental e uma das melhores coisas que a
televisão já viu.
Berlin Alexanderplatz (1980) é uma produção de quase dezesseis horas
que comporta o universo místico da Alemanha de Fassbinder, louvando a grande
questão da sua obra – a pessoalidade do artista enquanto identidade estética e
ideológica.
Entre leituras de “A Anarquia da Fantasia” (1988), a seleção de textos,
entrevistas e ensaios de Michael Töteberg sobre a carreira deste grande artista, há um
rico acervo de detalhes sobre os meandros sinuosos da relação de Fassbinder com
a obra de Alfred Döblin. Fica claro que a leitura do livro de Döblin, o ponto
de partida à produção desta série televisiva, influenciaria profundamente o seu
posicionamento, no que diz respeito ao trabalho biográfico e à sensibilidade na
construção de seus personagens.
Fassbinder conta que a maneira com a qual Döblin apresenta aquela complexa
relação entre Franz Biberkopf e Reinhold lhe estimulou uma identificação,
acima de tudo por existir uma compreensão e um acolhimento diante destes
indivíduos pela própria construção da narrativa que não lhes acusa, nem mesmo
quando apresenta suas falhas. Franz e Reinhold se amam e não compreendem este
amor. Este sentimento recusado entre eles dispensa caracterizações de gênero ou
de grau, a emoção que corrói os dois é como qualquer outra, mas não é aceita. É
justamente a recusa dela que se impulsiona uma disputa entre eles,
brilhantemente representada no epílogo, um sonho de duas horas apresentado como
uma mistura entre Fassbinder e Döblin. Aqui onde as duas vozes se cruzam e os
dois personagens aparecem no centro de um ringue, a composição teatral consegue
com todos seus elementos valorizar ainda o subjetivo, graças inclusive ao
potencial do texto narrado.
Surgem, então, a voz de Douglas Sirk e a influência sirkiana no trabalho
deste “anarquista romântico”. Fassbinder teria se referido assim a si próprio
numa entrevista sobre os elementos de seus filmes e o cruzamento do cinema com
o teatro em sua obra. Ele cita Sirk que comenta o potencial da iluminação como
ferramenta ideológica de um diretor. Sirk dizia que não podemos fazer filmes
sobre coisas, senão filmes com elas. Com pessoas, com amores e medos, com
roupas, com cores. Fassbinder acreditava na forma do cinema sirkiano mostrar um
leque de sentimentos diferentes e todos eles que florescem da denúncia social e
revelam uma função crucial do cinema a seu ver – proporcionar ao espectador a
possibilidade de analisar a sua própria situação graças à situação de outro.
Só que Fassbinder não tinha um sistema de estúdios nas suas costas e,
mesmo sendo grande admirador da personalidade de Sirk que ultrapassava as
rédeas hollywoodianas, desejava tornar a coisa mais obscura e refletir ainda
mais os dissabores da vida. Sua vontade é de fato chutar o pau da barraca,
fazendo seus personagens perderem o corpo, a casa, o pudor diante das
estruturas sociais nas quais estão inseridos. Sem medo do choque, pois ele move
e provoca à reflexão o espectador. No entanto, sua frieza clássica não acusa e
não julga seus personagens. Fassbinder nos deixa capazes e livres para tomar
este papel. Ele acreditava profundamente na sensibilidade pelos outros,
independentemente de quem fossem. Sua herança teatral e sirkiana do melodrama
singularizaram e imortalizaram um universo de realismo poético que pode ser
finalmente concebido como fassbinderiano,
especialmente por entregar-se àquilo como se fosse outra história de sua vida.
Eine Liebe, das kostet immer viel.
Franz Biberkopf é um personagem a ser dito – assassino, criminoso e
cafetão. “E as mulheres são o meu mau”, confessa o desafortunado Franz, entre
delírios de cerveja e kümmel. E além de tudo e de todos, Franz ama, sofre e
enlouquece. Sai de uma prisão chamada Tegel, depois de cumprir a pena por ter
matado Ida. Logo no início, ao deixar o cárcere, os barulhos de Berlin lhe
deixam apavorado com a ideia de retornar a sua vida, mas isso precisa ser
feito. Então, herr Biberkopf promete a si mesmo de endireitar e levar uma vida
honesta. Até que trabalhando como jornaleiro, encontra Reinhold, aquele que vai
leva-lo de volta às mulheres e entenda levar como nada além de um convite que
era já pré-disposto a ser aceito. Franz arrumava confusões, uma atrás da outra,
passando por uma associação de crime organizado, perdendo o braço e sofrendo a
morte de sua amada Mieze.
Tudo
parece tão bem disposto e os elementos da trama coexistem com a mesma naturalidade
que a fascinante personagem de Brigitte Mira espia a vida do nosso protagonista
e com a competência dramática brilhante de Hanna Schygulla. O amarelado da
direção fotográfica é tão simbólico como o amarelo do pássaro de Mieze,
detalhes zelosos do cuidado estético fassbinderiano,
ali tem tudo – nos enquadramentos, nos closes de espelho e na maneira como a
imagem fica surreal quando aproxima da luz onírica advinda da janela. O efeito
surreal destas sutilezas revelam o interior mais obscuro de seus personagens,
auxiliado pelo uso da narração em off. E a gentileza deles também é vista, a
cena antológica de Franz que numa canoa com Mieze movimenta dois remos com um
braço, a sequência revela a força emocional por trás da elegância estética
deste filme em treze capítulos e o epílogo, um espetáculo à parte que mistifica
o inconsciente de seu personagem, criando imagens de anjos, desejos, loucuras e
até da morte. O valor imagético de Berlin Alexanderplatz é hipnotizante e acima
de tudo agora, depois de ter sido remasterizado em 2007, poderá ser levado em
grande estilo a provocar as futuras gerações.
"A vida é demasiadamente curta
para a eternidade das emoções..."
BERLIN ALEXANDERPLATZ
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Assisti aos episódios 02, 03, 04, 12 e o epílogo em uma mostra sobre cinema alemão no CCBB-RJ ( localizado na Rua Primeiro de Março, 66 - Bairro: Centro - Rio de Janeiro-RJ ) nos meses de janeiro e fevereiro de 2016.
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