Recebemos, homens e mulheres, de corpos atentos o poder de sedução de
Anita, não por ser a linda garota, mas por personificar numa os diversos
desejos que não conseguimos, pobres coitados, conter em nós mesmos. As
representações tão plurais, construídas pelas imagens desta minissérie da Rede
Globo, imortalizam nos moldes do folhetim uma ruptura da instituição do
matrimônio, a traição. Há anos que a enaltecida emissora brasileira não
produzia algo com tamanhas qualidades visuais e polêmicas de revirar o imaginário
dos espectadores.
Para pensar o espectador tradicional de materiais específicos de ficção
como este, esbarra-se num dos pés da estrutura idónea e prenhe de ideais
americanos que temos como a família. Respeitada por uns, como a protagonista
Lúcia Helena (Helena Ranaldi) que venera a relação com o marido e é capaz de
sofrer as frustrações dele para poupa-lo, como toda heroína romântica, educada
com francês, piano e etiquetas de comportamento.
Trabalhando a irresistível atmosfera de opostos, esta proposta clássica
de folhetim não esquece os toques oníricos e bizarros, como a cartomante que
sempre espreita os personagens. A minissérie de Manoel Carlos coloca tudo que
desrespeita esta instituição familiar como indivíduos em oposição a Lúcia
Helena. O título engana, Anita está sempre presente, mas de fato a história é de
Lúcia Helena. Mulher que chora o tempo todo, devota aos valores do romantismo e
da moralidade, representa a si própria e o contexto em que vive, onde as
pessoas são frustradas com as lacunas de suas vidas e sonham com uma satisfação
que promete mais do que cumpre.
É possível reconhecer o tanto que seu sofrimento é real quando se olha
atentamente para as pessoas ao seu redor, são opostas. Ela é a realidade pelo
olhar da narrativa, os outros se representam em fantasias com as quais a
minissérie engendra o alívio ao espectador de uma melancolia latente. O único
momento em que Lúcia Helena não sofre é quando acaba o último capítulo. Nos
outros momentos, as fantasias tornam este “incômodo” da protagonista,
configurado justamente por ver aquilo do qual não se apetece, algo menos
lacrimal. Elas, as fantasias, mostram os voluptuosos exibicionismos de Anita,
correspondidos pelos fascínios de um adolescente de 15 anos que sonha com ela
através de uma janelinha, na mercearia da frente. Mostram o dono da mercearia,
cansado da mulher velha e pouco atraente, também fascinado pela jovem. Mostram
Marta (Vera Holtz), personagem irônica e racista que ao desvelar seus
sentimentos preconceituosos deixa chegar à tona o seu desejo por corpos negros
e musculosos. Há ainda a irmã Julieta (Carolina Kasting) que sonha com a
traição do marido para poder fazer o mesmo sem culpa e, ao contrário da
protagonista, traz consigo ideais modernos do grande centro urbano paulistano. A filha de Fernando Reis (José Mayer) é uma
jovem também presa a ideias modernos e cosmopolitas que odeia a “roça” em que
foi parar, sonhando todo tempo com shoppings e boates, até encontrar um rapaz
que lhe mostre os “charmes” do bucolismo. Estas muitas fantasias são os
elementos que dão significado ao contexto social da minissérie, uma narrativa
que não se finda em homem mais velho e “papa anjo”.
Anita pode ser vista como uma mistura entre “Lolita” de Vladimir Nabokov
e “A Cadela” de Georges de La Fouchardière, uma jovem idealizada que deixa
todos desconcertados ao seu redor pela sua exuberância sexual, apresentada com
uma ingenuidade infantil. Sua relação com os outros parece ser construída
misticamente, ela se atenta a uma morbidez sexual que impele os outros a
pensa-la como uma “pervertida”, mas parece ser ainda mais fácil perdoar suas
artimanhas no momento em que ela abre seu sorriso de menina travessa. A relação da trama com a cultura francesa é poderosa, reproduz os
valores clássicos de que os artistas estão à luz de Paris para aprender as
artes com os mestres e de que os melhores produtos chegam de lá. Para Anita, a
imagem de Armando, seu amor de longa data que só aparece por meio de memórias
contadas, representa o contato com as coisas que ela admira. A música de
Jacques Brel e Charles Aznavour, as ideias de Picasso, a sensualidade das
danças espanholas, a boemia que lhe diverte na música “Pigalle”, cantada por
Georges Ulmer.
É inevitável encontrar, ao longo da narrativa, pinceladas que exalam
inspiração de cinemas psicológicos e apreciações pelo que já foi feito com
elementos de surrealismo. REBECCA (1940) de Alfred Hitchcock é um filme que
também trabalha a ideia de uma mulher sedutora, aventureira e principalmente
admirada pelos personagens que, porém, nunca se materializa. Esta mulher é o
nome do título, falecida num acidente pouco explicado, que deixa todos
atordoados com a lembrança de sua existência exuberante. Em Anita, a jovem do
título se muda a um apartamento em que viveu outrora uma mulher chamada
Cíntia, morta pelo amante. Ambas as histórias ironizam a relação entre o amor e
a morte.
Uma das últimas frases contundentes de Nando é sobre o que ele julga em
Anita ser uma pulsão de morte. Ele é romancista e arquiteto de quase cinquenta
anos, que cai de amores por Anita, vive o dilema de dois mundos. Do primeiro, a
moralidade de sua família com filhos e o sogro problemáticos, ao segundo mundo,
espaço de prazer em que só tem momentos felizes e inspirações para fazer o que
lhe apetece, escrever e transar. Nando diz que Anita sempre quis morrer de amor
e ele não, é possível que lhe tenha concedido um desejo de eternidade.
Anita nunca escondeu suas características peculiares, suas habilidades
de ventríloqua que se orgulha de tê-las aprendido com Armando para dar vida à
boneca Conchita, o prazer em morar num lugar onde alguém morreu assassinado por
amor, a vontade de ser mais de uma pessoa, ser Anita, ser Cíntia e ser outras.
A jovem ama ser paparicada, como a personagem de “A Cadela”, interpretada de
maneira tão sensual quanto Joan Bennett, na versão da história dirigida pelo
mestre do expressionismo alemão, Fritz Lang. Chamado SCARLET STREET (1945), o
filme narra a história de um pintor casado que se apaixona por uma trambiqueira
que já tem um amante. Ela finge amá-lo por interesse. Talvez este interesse
financeiro não se explicite tanto em Anita, o que não diz que ele não existe,
mas deixa espaço para que outras coisas aproximem estas duas mulheres, a tensão
sexual e um desejo de amar as impossibilidades.
Ao desfecho da trama, o símbolo do fogo que explode o apartamento de
Anita e a ilusão de Nando, transando para sempre com sua amada, intercala com a
cena feliz de natal na fazenda. Todos os personagens cantam e regozijam de um
ceia sofisticada, ainda que uma forma de velar a hipocrisia e o ódio que
permeiam aquelas relações. Enquanto isso, noutro lugar - o apartamento de Anita, amor
queima como ritual de sacrifício daquelas pessoas que, como em toda boa
moralidade folhetinesca, precisam pagar pelo que cometeram.
Seria também interessante se a loucura do Nando perdurasse como símbolo de uma eterna autopunição, o guardar secretamente do assassinato cometido. Isso talvez lhe estimulasse um suicídio, como é o caso do gênio Edward G. Robinson pela personagem de Joan Bennett, no filme de Lang, intitulado aqui no Brasil como “Almas Perversas”. A sequência intercalada de cenas tão diferentes, ligadas apenas pela mesma sonoridade trabalha um conceito de execução muito comum no cinema, desde Nosferatu (1922) de F. W. Murnau. É uma onisciência da narrativa ao espectador que se aproxima de uma experiência de divindade, é o saber de todas as coisas.
Anita jamais poderia envelhecer, há risco demais
para deixar de ser atraente, de ter que encarar a realidade, de não poder mais
atrair os olhares dos outros com tantas facilidades. É mais conveniente para a
personagem manter-se intacta em sua idealização do amor e do erotismo. Depois
de acompanhar suas peripécias, chega-se a conclusão de que se forma aqui uma
metalinguagem pela repetição da música “Ne me quitte pas” de Jacques Brel,
interpretada com a pungência de Maysa. É como se a própria música nos pedisse
para não deixa-la e obedecemos ainda por muitos dias, antes de tirar ela(s) de
nossa cabeça.
Un petit jet d'eau
Une station de métro
Entourée de bistrots
Pigalle
Grands magasins
Ateliers de rapins
Restaurants pour rupins
PIGALLE!
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