PART I
Talvez até
algum ponto da carreira de Woody Allen, nós poderíamos dizer que ali se
mantinha uma estética com elementos constantes. Após os pontos altos e baixos
nos anos 90 e na virada do século com a insistência na produção em série, o
experimento em temas tão distintos acaba tornando diluída e questionável a
impressão de sempre buscar na lembrança o seu personagem neurótico de amores
nervosos, ainda que tenha se consagrado enquanto autor/dramaturgo. Woody Allen
muda. É isto. Não é necessariamente algo negativo, diria que são fases
diferentes onde o diretor aceitou estas mudanças e elas poderão ainda nos
surpreender muito. BLUE JASMINE é o caso.
Os últimos filmes
de Woody Allen tem variado conforme os lugares e as histórias que
o diretor percorre, estes filmes nos tratam diferentemente, ainda que em comum
haja a vontade de desvelar questões muito humanas. Entendendo-nos alguns como
espectadores das histórias cômicas que desbravam suas risadas com a lembrança
distante da eterna gargalhada de “Annie Hall” (1977), outros como sonhadores na
espera de poder ver um filme cômico que motive a complexidade das questões de
outrora. Hoje veremos um filme que retoma pela primeira vez a construção
feminina e complexa de lugares em sua filmografia ocupados por “Husbands and Wives” (1992), “Hannah and Her Sisters” (1986) e outros de seus anos dourados.
BLUE
JASMINE nos mostra a experiência de um autor que aceita a sua obra cruzada no
reconhecimento daqueles que vieram antes, como Tennessee Williams. Pautando seu
filme na construção sulista de um dos principais contribuintes do texto teatral
americano, Woody Allen consegue brincar com duas questões de seu afã, o
cruzamento entre a tragédia e a comédia, lembre-se de “Mighty Aphrodite”
(1995), concebendo um trabalho fundamental para a atriz Cate Blanchett que vem
de realizar no teatro uma leitura da construção do principal personagem
tennessiano, Blanche DuBois.
A
referência está além do explícito, desde a primeira linha do filme quando a
protagonista enaltece o ex-marido e lembra de que “Blue Moon” era a música que
tocava quando eles se conheceram. Em “Um Bonde Chamado Desejo” [1947], a irmã
acostumada a uma vida simples e tomada pela virilidade de seu homem representa
a fraqueza medíocre e a falta de refinamento, dentro da perspectiva de uma
mulher perturbada pelo passado e atacada pelos nervos. Uma bela mulher que outrora
conhecera a sofisticação, tagarelando “Paper Moon” ao banhar-se. E os impulsos
libidinosos, nos braços de um jovem rapaz, dançando a varsouviana no Moon Lake
Cassino.
ENTR'ACTE
PART II
Décadas
depois, estamos agora no momento americano de Woody Allen, visitando a grande
São Francisco para construir enlaces romanescos, onde grandes obras como “Vertigo”
de Alfred Hitchcock foram concebidas, uma mulher interpretada como a versão
contemporânea de Blanche DuBois ainda intrigará muitos espectadores com a sua
hipnótica sensibilidade. Na mesma medida que a personagem da peça encontra uma experiência de provação, Jasmine se vê desafiada à desconstrução do ideal de mundo que havia em si para, então, seguir em frente após um colapso de classes sociais, representado pela sua visita à irmã. Assim como na obra tennessiana, existe uma grande
discussão acerca do passado, o grande mote do cinema Noir dos anos 40
e a principal recorrência das histórias policiais consumidas na época.
O passado
representa um grande fantasma que retorna para pedir as contas e, num misticismo
em nível do absurdo de que o destino ostenta sob os homens um poder
imperdoável, ambas as histórias colocam o fardo da multa na costa de seus
principais personagens, talvez os que menos estavam preparados para suportá-lo.
Lembrando uma citação de Tennessee Williams sobre a compreensão das pessoas
delicadas, a razão pela qual ele teria passado todo aquele tempo sulista num
quarto preparando em sua singela máquina de escrever um bonde, uma metáfora de
grande desejo que atravessaria a história do teatro americano, numa homenagem,
especialmente, à sua irmã que havia sofrido com doenças e cuja sensibilidade
lhe movia profundamente.
(De Elia Kazan, "A streetcar named desire", 1951)
BLUE
JASMINE quebra a estrutura teatral da peça de Tennessee Williams, numa
tentativa de utilizar o flashback e atualizar a própria condição de narração.
No entanto, este recurso já muito desgastado pelo cinema dos anos 40 e 50 não
funciona hoje com a mesma agilidade, talvez uma experimentação quanto ao
desvelar da história pelos diálogos seria um maior desafio.
Desafio que
encontra impedimento na escolha mediana do elenco de coadjuvantes. A réplica da
atuação de Marlon Brando não funciona e a própria irmã de Jasmine mostra-se insuficiente
para representar um personagem tão especial e forte para a narrativa tennessianna.
Uma curiosidade, na versão da adaptação para cinema realizada nos anos 90, Alec
Baldwin teria feito Marlon Brando sem muito destaque e agora, ele percorre aqui
os mesmos papéis de sempre. Ou seja, é inegável que tratamos aqui de um filme
para a verdadeira leading actress, daqueles que tombam no elogio ao
tour-de-force.
O passado Jeanette entra em colapso com o presente Jasmine, o resultado disto é o próprio
termo blue em inglês que vai brilhantemente descrever, perpassando do sentido
cromático para o estado psicológico, uma das grandes sensações com as quais o
espectador pode sair da sala de cinema; No cruzamento de emoções de cada um, pode haver o alívio
de não ser o personagem, o desespero de poder se tornar ele ou mesmo de
simplesmente se identificar. Woody Allen conseguiu, como em seus principais dramas
existenciais dos anos 70 e 80, retomar o fardo de memórias e sensações para um
espectador em seu momento pós-fílmico, mas desta vez com um diferencial, do
ator e da direção de ator enquanto principal ferramenta do fazer
cinematográfico. Acompanhados por um trabalho sonoro em Blues.
FIN
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