quinta-feira, abril 26, 2012

Tudo Sobre Eva


Em "Queen Bee" (1955), Joan Crawford foi incumbida de ser a abelha-rainha como manda o figurino, soltando os ferrões, sutis e mortais. Uma narrativa menos surpreendente do que se esperaria, marcada excepcionalmente por agradar aos fãs da atriz com frases de efeito sarcástico e elegante. O figurino magnífico de Jean Louis veste a maliciosa personagem de Crawford (Eva Phillips), uma mulher solitária que tortura os outros com os subsídios de suas frustrações. Este drama de temática familiar foi dirigido por Ranald MacDougall, conhecido pelo roteiro de "Mildred Pierce" (1945), e constrói personagens muito interessantes. A narrativa parte da ideia comum da pessoa que visita determinada casa habitada por uma família cujas dificuldades de convivência e conflitos afetivos não estão aparentes, podendo desdobrá-los gradativamente conforme o visitante se envolve com cada um deles. Fórmula que eu chamaria de "A Visita", utilizada algumas vezes pelo escritor Tennessee Williams em textos como "Gata em Teto de Zinco Quente", "Um Bonde Chamado Desejo", além de outras que reviram como nunca o passado, em "Sonata de Outono" de Ingmar Bergman, ou a comédia britânica de humor negro "O Aniversário" com Bette Davis, de Roy Ward Baker.
 Jennifer é uma garota bonita, ingênua e amistosa que visita, a convite da prima Eva Phillips, a casa dos seus familiares sulistas, em Georgia. Quando chega, depara-se com a cunhada de Eva, Carol Lee Phillips (interpretada pela famosa Betsy Palmer de "Sexta-Feira 13"), o marido bebum Avery Phillips que se refugia no álcool para se esquecer das frustrações matrimoniais e tem uma cicatriz, cujo horror é ironizado pela esposa Eva com o apelido "Beauty" ao marido. A garota se assusta com o astral esquisito em que a casa está imersa e chega até a achar que tem culpa por isso. Posteriormente, compreenderia o passado glorioso e depravado de Eva que inclui affairs com homens casados e ainda com o bonitão Judson, administrador na fábrica do grande amigo Avery, pretendente de Carol no tempo presente da narrativa. A forma com a qual o filme desvela o seu tempo psicológico, indicando as condições trágicas dos eventos anteriores à chegada de Jennifer, funciona muito bem e, não obstante ao ponto final descartável da trama, merece cuidado ao ser analisado. Joan Crawford como Eva está uma vilã adorável que desfila com suas maneiras ofensivas e elegantes, procurando o defeito em todos para poder destroça-los sem cerimônias, só que em alto estilo de superficialidade e educação. Brigas entre mulheres com tapas estão sob a forma de disputa social e ostentação. Décadas depois, Christina Crawford (1978) publicaria em seu livro de memórias sobre a mãe que teria odiado o filme no ano em que assistiu. Joan Crawford não interpreta a personagem Eva, mas ela mesma quando está em casa bêbada e no seu pior, descreve Christina em sua ácida narrativa e, curiosamente, sempre colocando entre aspas a palavra "mamãezinha".

"When I saw her movie called Queen Bee about a year later I hated it. I found the entire film horrifying. That wasn’t any acting job on Mother’s part. It was exactly the way I knew her at home when she’d been drinking and was at her very worst. That woman on the screen really was my mother".
(CRAWFORD, Christina. 1978, p. 185)



Por infortúnio, a trágica e deliciosamente fotografada sessão de "Queen Bee", em que suas atuações e entraves outrora prometeram uma ótima ironia social, termina por rumos indesejáveis, inconvincentes e que funcionariam melhor em telenovelas. Todavia, o filme não envelheceu tão mal e não parece também que irá se cansar de exibir a talentosa figura de Eva. "Uma mulher tão sórdida que queremos vê-la morta", e eu cito observação pertinente do amigo Lucas Leigh a um dos quais esta análise é dedicada, além de que esta frase de efeito – também elucidada noutras palavras pelo crítico Bosley Crowther em The New York Times – foi caracterizada nas memórias de Christina Crawford como o resumo perfeito do filme.

MEL

"Ó, abelha-rainha
Faz de mim um instrumento
De teu prazer, sim, e de tua glória
Pois se é noite de completa escuridão
Provo do favo de teu mel
Cavo a direta claridade do céu
E agarro o sol com a mão."


Mel, interpretada por Maria Bethânia.



Referência Bibliográfica

CRAWFORD, Christina. Mommie Dearest. 1st Ed. NY: Berkley Books, 1978.

terça-feira, abril 24, 2012

Sobre as mulheres de George Cukor

"The Women" é uma comédia estadunidense de 1939, dirigida por George Cukor. O roteiro de Anita Loos e Jane Murfin adapta a peça teatral homônima de Claire Boothe Luce. Assim como a peça, o elenco do filme é formado todo por mulheres (ao todo, cerca de 130) e, inclusive, os muitos animais de estimação que aparecem são também todos fêmeas. Trata-se de uma história sobre amor entre homens e mulheres - na alegria e na tristeza.


Joan Crawford está divina, mas Norma Shearer quase rouba a cena como a esposa frustrada que não consegue aceitar a hipocrisia matrimonial, brilhantemente ironizada por Cukor, inserida e imposta no seu contexto social. Se pensarmos ideologicamente, as provocações entre as mulheres – recheadas de violência simbólica às futilidades da alta sociedade – compõem o que há de mais primoroso, enquanto a ironia de um retrato social, nesta obra quintessencial de Cukor. Reconhecido como o diretor das mulheres em Hollywood, Cukor extrai com um humor irretocável as interpretações do seu elenco totalmente feminino, mas por infelicidade com uma premissa nada feminista. Este filme é tão belo quanto fútil de se assistir. A forma como o roteiro estigmatiza a mulher de sua época incomodaria feministas até se fosse mudo. Cukor conta que a sequência em cores do filme lhe foi imposta e isso – pelo menos dá certo alívio de ler, possibilitando desvelar a ideia de que o diretor não compartilhava exatamente de toda visão de mundo construída em seu filme. Todavia, tinha-se a consciência da banalidade que espreitava as relações da alta sociedade hollywoodiana nos anos 30 e, em muitos momentos, era isso o que o público queria ver. Seja um show de moda no auge do Technicolor ou a divulgação do novo esmalte sensação, como o “Jungle Red”, passando pelo culto às celebridades que lhe serviam de inspiração.

Imagem emprestada da interessante matéria sobre a cor vermelha
do site ROCKPAPERINK. Para conferir, clique aqui.

Assistir ao filme “As Mulheres” assumindo um olhar de qualquer ideologia que preze pelo exercício da liberdade feminina é como pedir uma sessão lenta de autoflagelação. Entretanto, é possível ter uma sessão mais tolerante, caso o espectador se dispa de ideias atemporais e específicas, no que diz respeito ao retrato feminino do filme, cuja abrangência social específica pode ser particular a sua época. Mesmo que reflita e seja reatualizado pela contemporaneidade, o discurso do filme de Cukor merece ser contemplado com uma separação de valores, em prol também de evitar os preconceitos ante as ótimas atuações, vide a brilhante Rosalind Russell, além ainda da direção e a composição sonora, ambas exímias. Está bom, ou quer mais? Tem ainda o confronto final entre as personagens de Crawford e Shearer, um disfarçe para a competição que realmente havia entre as atrizes. Crawford era a flapper, cheia do fogo nas entranhas e excluída da turma sofisticada de Hollywood. Shearer era querida nestes meios, como também tinha contatos para os melhores papéis da MGM. Em “The Women”, talvez não há muitos limites entre ficção e realidade, o que muito caracteriza a sua forma de deliberar fascinação.


És fascinação, amor. - Elis Regina

sexta-feira, abril 20, 2012

Sobre um rosto de mulher


Em A WOMAN'S FACE (1941), Joan Crawford encara e supera o que haviam lhe avisado como um risco a sua carreira, interpretar uma mulher cujo rosto deformado acidentalmente a transformaria numa maligna e frustrada criatura. Baseado em "Il était une fois" de Francis de Croisset como também na primeira adaptação cinematográfica e sueca (1938, Dir. Gustaf Molander) com Ingrid Berman, este fascinante trabalho de George Cukor diferencia-se a partir de uma linguagem brilhantemente construída nas obscuridades de seus personagens, narradas com uma sucessão de flashbacks e, através dos 106 minutos de duração, nunca perpassa as paredes de um tribunal. A narrativa desencadeia diversas intrigas, conspirações e por fim reviravoltas que talvez não sejam tão prováveis quanto o envolvimento implicado no espectador pelos atores em tais eventos, não obstante ainda ao fato de ser uma refilmagem e sair muito bem-sucedida enquanto veículo para Crawford.


Cukor dirige muito bem cada ator de forma que o espectador consiga observar os detalhes dos eventos que merecem uma atenção especial. Não se pode esquecer como a edição na montagem de cada fotograma parece ser milimetricamente orquestrada, desvelando aos olhos do espectador belas imagens a serem guardadas na memória. Vide os crossfades de Anna Holm/Ingrid Paulssen dançando ao som do piano, a cena-chave de suspense em que ela e a talentosa criança Richard Nichols (garoto de apenas 6 anos na época e já tinha aparecido em outros filmes, como "Tudo isto e o céu também", estrelando Bette Davis) são vistos numa linda paisagem de neve sueca, os primeiros momentos – respectivamente – em que o espectador vê o rosto marcado e posteriormente a transformação física e espiritual proporcionada pela cirurgia plástica do médico apaixonado Gustaf Segert. Discordo que a moralidade de retratar a mudança psicológica da personagem de Crawford como antes e depois da cirurgia, uma mulher amarga/frustrada/maldosa que se transforma noutra esperançosa/altruísta/amável, esteja superficialmente debruçada em metáforas superficiais. Pelo contrário, a forma como a narrativa desencadeia a personalidade de cada um daqueles indivíduos me faz crer que há maior complexidade no cerne de tudo isso, não obstante ainda às tramoias da narrativa que não são lá muito plausíveis. Ao tentar traçar uma trajetória para a personagem Anna, em seu contexto ficcional, percebe-se uma gigantesca recusa social de sua aparência deformada, na qual muitos das figuras coadjuvantes ainda exprimem possivelmente o que seria um terrível preconceito àqueles que fogem dos padrões e isso ao longo da narrativa se faz mais que explicitamente. A consequência dessa atitude social é fatal e não que vá realmente transformá-la numa mulher chantagista ou ladra, mas possivelmente implicaria nela gravíssimos ou ainda irremediáveis conflitos emocionais. É interessante, irônico e até sagaz como filme mostra o oposto disso no momento em que a protagonista é operada. Ao sair na rua pela primeira vez, a personagem é colocada frente a uma metáfora, uma criança que sorri para ela intensamente, admirando sua beleza, isto é, simbolizando que a sua nova aparência pode e irá permitir que ela seja bem recebida onde um dia já foi humilhada. Por mais Camp, exótico ou caricato que isso vá parecer, o nosso contexto social não está muito longe disso. Ótimo filme, sustentado em fascínio pela sua principal atriz, num argumento concreto e nos diversos artifícios de abordagem caricata, melodramática como a maioria dos filmes da época, todavia magnífico por conter em seu anseio por entretenimento uma alfinetada genuína à sociedade hollywoodiana.




"Since the day I met you, you presented a perfect picture of the most ruthless, terrifying, cold-blooded creature I've met. It's been a picture which has fascinated me." Palavras do médico sobre sua paciente, personagens de Melvyn Douglas e Joan Crawford. Assino embaixo.

Quando Frankenstein retorna à Hollywood num rosto de mulher, um filme de peso social e artístico que realiza tudo isso em moldes démodé.

sábado, abril 14, 2012

Sobre a geração do sexo, drogas e rock'n'roll

TOURO INDOMÁVEL (Raging Bull, 1980) é um filme estado-unidense de 1980, do gênero drama, dirigido por Martin Scorsese, que promoveu um verdadeiro marco no cinema da década de 80 e modificou profundamente a cultura suburbana dos EUA, narrando o sucesso e a decadência de Jake LaMotta, um filho de imigrantes italianos que se torna pugilista da categoria peso-médio e era conhecido como "o touro do Bronx".


Magnífico exercício psicológico sobre o pugilista Jake LaMotta enquanto iniciativa do talentoso Robert de Niro e grande realização de Martin Scorsese. Sua arte em técnica é singular e inovadora em termos de realismo, assustando um pouco o público da época com a sua violência. Todavia, ao olhar do espectador contemporâneo, o formato explícito de linguagem em Touro Indomável talvez seja entregue de forma mais ocasional, podendo expressar melhor outras facetas de sua montagem plenamente elogiosa. Ao explorar a misoginia do consideravelmente fechado universo de LaMotta, repleto também de insinuações homofóbicas, Scorsese encontra o cerne de sua proposta fílmica nos instintos mais animalescos de seu protagonista. É genuinamente racional ao guiar a atuação sofisticada de De Niro pelos surtos de violência do personagem sem desculpá-las, mostrando ao invés o preço pago, as consequências que precisam ser enfrentadas mediante suas ações. Além do elenco empenhado, como Cathy Moriarty no auge de sua beleza, capturada tão sensualmente pela câmera, o espirituosíssimo Joe Pesci como o fiel irmão de LaMotta, este renomado trabalho de Scorsese acertou em cheio na escolha cinematográfica de Thelma Schoonmaker, no uso de preto e branco. Também em recursos – à primeira vista, primatas – como sons de animais e pouco arsenal técnico, legitimando a sua experiência técnica a partir do olhar inovador em prol do realismo. A composição sonora ficou a cargo de Pietro Mascagni e os vários efeitos visuais com a premiada edição por Schoonmaker tornam a biografia de LaMotta belíssima de se assistir e ouvir, atribuindo credibilidade à experiência do espectador com este filme tido como uma sinfonia de violência. Assino embaixo.


Uma fascinante sinfonia de violência.

terça-feira, abril 10, 2012

Emoção com urgência, em Titanic 3D

Então, é isso? Será que estamos totalmente sucumbidos à magnificência do cinema em três dimensões? James Cameron parece responder esta questão com uma afirmativa que corresponde bem aos seus últimos trabalhos. Reconhecido por contribuir na redescoberta do recurso que culminou em grandes valores de bilheteria, o diretor de “Avatar” (2009) anuncia o que pode lhe render ainda mais no box office. Titanic merece voltar para as telonas e será feito de tudo para que isso ocorra. Um dos filmes-catástrofe mais assistidos do mundo que relata o náufrago de um gigantesco navio no oceano Atlântico. Diversas produções já ousaram adaptar a história de Titanic para o cinema, mas nenhuma como a de Cameron conseguiu explorar grandiosidade, luxo e emoção – num mesmo filme. Insatisfeito com o legado e frente ao tumulto que tem sido causado por conta de uma necessidade constante e progressiva, mesmo que não saibamos até quando, de significar o termo “remasterizado” e de obter cada vez mais envolvimento com a imagem, o previsível relançamento de Titanic aconteceu.


Interessante é admitir que a tentativa de inserir os efeitos visuais 3D, conforme aconteceu neste relançamento “comemorativo” dos 100 anos de náufrago, deixa evidente a sua falta de necessidade. Tanto é que o filme sempre obteve sucesso mesmo com menores possibilidades de bombardear o espectador com imagem e som. Na verdade, a insatisfação humana pode não ver limites e, por mais que a ideia de evolução seja fascinante desde Darwin, o progresso também precisa encarar sua consequência voraz (palavra que deve agora também cair no gosto popular do exagero). Um filme de orçamento tão significativo como Titanic não seria refilmado assim facilmente e – por conseguinte – Cameron relança como “Titanic 3D” o filme em si com montagem similar, mas com uma edição de imagem e som também catastrófica. Em muitos momentos, os novos planos de Titanic podem remeter o espectador às características técnicas de filmes clássicos cujas ambientações pareciam às vezes estar avulsas aos personagens, isto é, que provavelmente foram filmados em estúdio e posteriormente aplicados em ambientes públicos e/ou outros, etc. Muitos dos novos planos de Titanic 3D tiveram objetos apenas transportados para frente e o ambiente de fundo levemente desfocado, como se buscasse transmitir maior profundidade. Contudo, o recorte mais transmite sensações de artificialidade (vide a questão do personagem e fundo avulsos) do que envolvimento com o espectador em si, mesmo que a trilha sonora esteja visceralmente impactante. A verdade é que acompanhar as peripécias desta trágica narrativa, com toda reflexão passível de ser encontrada, merecia mais crédito do que a queda do colar da Rose, pois tanto faz se ele passa perto ou longe do olhar do espectador, talvez compreender o filme em sua ideologia seja muito mais enriquecedor, além de indicar também que é possível um olhar crítico por trás do entretenimento.


Ao ser relançado na efervescência da globalização, Titanic em sua proposta ideológica reafirma ainda mais as contradições que sustenta o contexto social em que vivemos. Vejamos como e o que isso quer dizer. O roteiro de James Cameron tenta desenvolver paralelamente duas facetas do desastre Titanic, a realidade e a ficção. Sua forma de conjugar estes dois poderosos elos, profundamente entrelaçados, mostra-se incisivo na hora de guiar o olhar do espectador e fazê-lo concordar com a sua postura. Há de fictício o romance meio shakespeariano que evidencia o amor puro e desinteressado, cercado por ganância e entraves psicológicos e sociais, que gradualmente se descobre preso e impedido de realização, conforme o exterior também despedaça e culmina em nada senão tragédia. Pode parecer apenas poético, mas Cameron engenhosamente transforma figuras ilustres e ricas que estavam mesmo no navio, além das fofocas da época, em personagens cúmplices do romance do casal interpretado por Leonardo DiCaprio e Kate Winslet. Jack Dawson e Rose DeWitt Bukater são nomes que provavelmente não serão esquecidos, eternizados em seus personagens que ocupam classes distintas e são representados de maneira imagética e muito metafórica, em cenas (por exemplo) que Jack está em ambientes sujos com roupas pobres, ratos e – em contrapartida – Rose passeia por corredores com carpete, vestindo roupas de alta costura e cercada por elegância e joias. Trabalhando sem receios em cima de uma crítica faminta às futilidades burguesas, claramente alegorizando com o luxuoso navio em destruição uma sociedade aristocrática de méritos inatos decaindo e apresentando as suas fraquezas. Seguindo constantemente com comparações fortes e ideológicas a respeito de como a felicidade burguesa e aliciada ao bem material pode estar vazia e marcada por sofrimento, ante a terceira classe com sua sabedoria e passividade quase espiritual frente ao trágico, sendo feliz e conformada com pequenas coisas, como a festa do início que Jack ensina a Rose, denominando-a “festa de verdade”.


Em certos momentos, a linguagem cinematográfica realizada por Cameron consegue transpor com imagem e som argumentos como estes, guiando (claro!) o olhar do espectador. Por exemplo, quando o espectador conhece a personagem Rose, momento que é aliciado a uma narração que não só tenta expressar a situação psicológica do personagem como confirma este ponto de vista ideológico. A narração diz que Rose se sente carregada em correntes para a América com uma vontade de gritar que ninguém nota. O que é típico de personagens que já se introduzem numa condição de miséria existencial relativa ao contexto social apático, onde geralmente abre espaço forte para reviravolta. Exatamente no momento em que a personagem diz sentir vontade de gritar, acontece uma analogia de som e o navio solta um grande barulho com o intuito também de anunciar a partida do navio. Em outro momento particular, Rose briga com o noivo Cal Hockley e o mesmo derruba a mesa de café da manhã e sai, deixando Rose com a mão no peito, novamente inserindo a ideia de vida sufocada e infeliz. Logo após o plano do peito de Rose, temos um corte em que somos posteriormente levados a um quarto no qual a mãe de Rose aperta veemente o seu espartilho, proibindo-a de ver Jack novamente. É como se o filme indicasse simbolizando que a mãe de Rose também contribui com o fato da garota se sentir sufocada, pondo em suas costas o peso de sustentar a família com um casamento arranjado. O que pode remeter não apenas à famosa sequência de outro épico “...E o Vento Levou” (1939), mas também realizar uma analogia crítica interessante sobre como a implicação do meio social é usada paralelamente ao fato do navio estar naufragando. Tem ainda a cena excluída de que Rose teria saído do jantar e ido ao quarto para descansar, mas ao tentar retirar as roupas não conseguiria, ficando assim angustiada e mais estimulada ao suicídio. A cena é muito boa, Winslet coloca uma interpretação melancólica e emocionante, mostrando como a sua personagem se sente presa a valores sociais nos quais não acredita. Excluída do filme, esta que teria sido uma significativa sequência ficou para os extras, mas também corroboraria com o mesmo ponto de vista. Confira ela aqui:


Cena excluída de Rose, intitulada "Trapped"

Agora podemos tentar desvelar a questão de maior importância neste ponto de vista, a posição ideológica do filme quanto a práticas burguesas. Parece intrigante a forma como Titanic é recebido em seu contexto social, especialmente neste ano e com o relançamento em 3D. Como pode estabelecer tão claramente a distinção entre as classes econômicas, posicionando-se em relação as duas para desenvolver o ponto de vista que guia o espectador a desassociar valores de vida e riqueza material, se ao mesmo tempo reproduz práticas do capital? Como antes colocada, existe moral construída na engenhosa narrativa de James Cameron, onde o luxo da prática burguesa é associado a uma bem trajada miséria existencial, enquanto a terceira classe mesmo sem recursos vive com felicidade. No entanto, esta falsa ideologia transcende o filme se contradizendo. Levando em consideração que o filme voltou aos cinemas para recorrer a mais lucros, levado ao 3D para estabelecimentos que cobrarão em torno de 15 reais por ingresso, percebe-se já aí que o filme não se importa de não estar disponível igualmente a todos, e com isso terminar legitimando as práticas que desde o começo são direcionadas ao seu público. Quer mais? Parece que serão lançadas réplicas do colar de Rose para serem sorteados em combos àqueles que adquirem o que for demandado. Isso porque a personagem Rose diz que a joia é feia e pesada, imagina se não fosse. Então, como crer nos argumentos do filme sobre a felicidade a partir das coisas simples e dos sentimentos puros, desinteressados, se ele próprio contribui para a reprodução de valores opostos, particularmente capitalistas?


Gigantesco adereço promocional do filme, em Los Angeles.
Fotografado em 29 de Fevereiro, na Sunset Boulevard.
(Crédito: Daily Billboard)

Na forma com a qual o cinema norte-americano comercial vem se moldando, é difícil até levar esta questão tão a fundo, já que boa parte da produção atual está voltada essencialmente para a busca de emoção com urgência. Não é apenas em Titanic que esta contradição está presente. O espectador representado pelo conceito de Indústria Cultural é o indivíduo que vai ao cinema com um propósito que não é assistir a um filme difícil de ser digerido, mas o oposto disto. Procura-se sentir emoção com urgência, talvez para ocupar vazios ou consolar conflitos não-resolvidos, não se importando até com a banalização que vem acometendo os produtos culturais e fortalecendo cada vez mais o consumo massificado. No caso de Titanic 3D, encontraremos um filme que ainda traz no seu final o toque de otimismo do amor que transcende a tudo e todos, e embora mantenha orgulhosamente as suas falhas pela visão sociológica, merece reconhecimento por sua grande realização em cinematografia. O filme é grandioso, luxuoso e emocionante de se assistir mesmo sem óculos 3D. Sua narrativa vai continuar sendo um triunfo não apenas repleto de uma linguagem objetiva e segura de si, como também de valores morais convenientes. Cabe ao espectador interpretá-los e engendrar discussões conforme desejar, pois ao filme não falta exageros na mesma proporção que esbanja fascinantes questões de cunho sociológico.


Para concluir, sirvo a vocês uma última reflexão. Que não seja evitada em Titanic uma das verdadeiras metáforas do Cinema – o navio inteiro naufraga, mas quem desce primeiro é a classe inferior. E com ironia, quando um dos geniais coadjuvantes solta o seguinte enunciado....

Music to drown by. Now I know I'm in first class.

quinta-feira, abril 05, 2012

Especial Bette Davis

Félicitations! 05/Abril/1908


Comento neste special post o documentário do TCM sobre a vida da atriz.

Escrito e dirigido por Peter Jones, cineasta e jornalista, vencedor de 1 Emmy. Narrado por Susan Sarandon, "Stardust: A história de Bette Davis" explora a carreira da atriz a partir de um ponto de vista psicológico com fotos e vídeos ao longo da sua carreira. O documentário é comentado por Jane Fonda, James Woods, Ellen Burstyn, Gena Rowlands e conta com a participação do filho da atriz, Michael Merrill, que conversa sobre o casamento dos pais e o polêmico livro de memórias escrito pela irmã.


Uma organizada sucessão de fatos sobre a trajetória que levou Bette Davis ao estrelato, STARDUST não é apenas uma grande homenagem à atriz, a representação de uma verdadeira dama, mas também um produto que assume a responsabilidade de tratar a vida pessoal de Bette Davis, não utilizando caracterizações sensacionalistas. Além de compor muito bem o material de entrevistas com a atriz, sequências de seus filmes e variados comentários dos simpatizantes, o documentário possui muita segurança na hora que trata a proposta escolhida, promete explorar a imagem de força e perseverança consolidada pela atriz. Buscando caracterizar a formação de Bette Davis, o roteiro atravessa os momentos felizes da jovem desconhecida Ruth Elizabeth e familiares em Maine para depois abordar as lutas vindas com a velhice e o estrelato. Salienta frequentemente a importância do abandono paterno na vida da atriz, refletindo assim sobre a coragem de sua personalidade enquanto mulher à frente de seu tempo, uma contestadora nata dos preceitos legitimados pelos estúdios cinematográficos da época e, ao mesmo tempo, decadente na vida pessoal. "My Mother's Keeper" é o livro de memórias publicado pela filha de Bette Davis e representa simbolicamente o ponto fraco da atriz, a vida pessoal conturbada – casamentos falidos e acusações concebidas de insatisfação. Contudo, o legado da atriz para o cinema consegue perpassar estes conflitos essencialmente humanos e, contemplado neste documentário pela perseverante faceta da atriz frente à responsabilidade de seus personagens, obriga-nos a admitir a eternidade da sua dedicação.

Bette Davis, parabéns pelo seu sucesso!


quarta-feira, abril 04, 2012

Especial Joan Crawford


TCM APRESENTA
Dirigido por Peter Fitzgerald. 2002.
Narração por Anjelica Huston.

Existe outra Joan Crawford que deveríamos lembrar. Sábias primeiras palavras que introduzem e enaltecem a imagem da atriz, representada neste documento de Peter Fitzgerald como a estrela definitiva do Cinema. Construída como ícone de feminismo e revolução no início da carreira, tão famosa pela beleza sublime quanto pela infame relação com a filha Christina Crawford, a nascida pobre com promessas de dançarina Lucille Fay LeSueur tornar-se-ia outra das evidentes e complexas figuras paradoxais hollywoodianas. Teria superado uma vida conturbada, abusiva e machista para encontrar ascensão social e sucesso instável, mas não se desassociando por completo da reprodução de práticas familiares afetivas e violentas que noutra época lhe perturbara. 


A perspicaz direção de Fitzgerald tende como argumento principal, por trás de inúmeras imagens e comentários bem organizados, a iluminar a face da figura de Crawford que eventualmente se encontra obscura e esquecida. Na MGM dos anos 20 e 30, quando Lucille LeSueur tornou-se Crawford, não se imaginava que apenas uma dançarina extra dos primeiros filmes do estúdio, onde a atriz encontrara-se realizada por mais de dez anos, contemplaria seu próprio nome com uma personalidade única. Joan Crawford era mais que uma estrela, apurava o seu comportamento e a sua imagem com tanta subjetividade que se transformou num personagem. 


Em memória de sua figura, não esqueceremos a elegância latente, os traços da boca e o rosto distintos. Atrelados a esta composição estética está muitas vezes também uma ideia trágica de mãe abusiva, alcoólatra e destruidora do próprio lar. Em contrapartida, pouco se recorda das condições sociais que intensamente desafiaram a jovem e inexperiente Crawford, mas que não a impediram de se legitimar como uma estrela, uma vez cercada por ostentação e práticas burguesas como o único ideal. A atriz se encontrou subjugada a aceitar papéis recusados de atrizes já consolidadas, estigmatizada por conta da vida boêmia lhe apetecer, recusada em eventos célebres como decorrências dos mesmos estigmas. Engajado pela vontade de trazer reconhecimento às conquistas da atriz, o genuíno desenvolvimento deste filme-documento com vários dos mais aficionados comentaristas, historiadores ou até mesmo atores como Charles Busch, Anita Page, Betsy Palmer, além da própria filha Christina Crawford e ex-maridos, funciona com uma abordagem equilibrada, não se derretendo em paixão, nem escandalizando o público com uma lista de acusações, como de praxe à fama de mamãezinha querida. 


Na medida certa, obtém-se informação necessária para constatar verdadeiramente que – conforme citarei o talentoso Busch – negar um lugar à Joan Crawford na história de Hollywood é como eliminar o centro de toda a estória. "Joan Crawford: The Ultimate Movie Star" é uma efetiva e grande realização em cine-biografia que não apenas desmistifica o enunciado "No more wire hangers" como também contempla os fãs da atriz com uma incursão deliciosa por imagens jamais vistas.


"Joan Crawford é indubitavelmente o melhor exemplo da mulher flapper. A garota que você vê em casas noturnas vestida no ápice da sofisticação. Manuseando copos e gelos com uma expressão ligeiramente amarga. Dançando deliciosamente. Rindo muito com olhos arregalados e feridos. Jovens coisas com talento para viver."

- F. Scott Fitzgerald