Então, é isso? Será que estamos totalmente sucumbidos à magnificência do cinema em três dimensões? James Cameron parece responder esta questão com uma afirmativa que corresponde bem aos seus últimos trabalhos. Reconhecido por contribuir na redescoberta do recurso que culminou em grandes valores de bilheteria, o diretor de “Avatar” (2009) anuncia o que pode lhe render ainda mais no box office. Titanic merece voltar para as telonas e será feito de tudo para que isso ocorra. Um dos filmes-catástrofe mais assistidos do mundo que relata o náufrago de um gigantesco navio no oceano Atlântico. Diversas produções já ousaram adaptar a história de Titanic para o cinema, mas nenhuma como a de Cameron conseguiu explorar grandiosidade, luxo e emoção – num mesmo filme. Insatisfeito com o legado e frente ao tumulto que tem sido causado por conta de uma necessidade constante e progressiva, mesmo que não saibamos até quando, de significar o termo “remasterizado” e de obter cada vez mais envolvimento com a imagem, o previsível relançamento de Titanic aconteceu.
Interessante é admitir que a tentativa de inserir os efeitos visuais 3D, conforme aconteceu neste relançamento “comemorativo” dos 100 anos de náufrago, deixa evidente a sua falta de necessidade. Tanto é que o filme sempre obteve sucesso mesmo com menores possibilidades de bombardear o espectador com imagem e som. Na verdade, a insatisfação humana pode não ver limites e, por mais que a ideia de evolução seja fascinante desde Darwin, o progresso também precisa encarar sua consequência voraz (palavra que deve agora também cair no gosto popular do exagero). Um filme de orçamento tão significativo como Titanic não seria refilmado assim facilmente e – por conseguinte – Cameron relança como “Titanic 3D” o filme em si com montagem similar, mas com uma edição de imagem e som também catastrófica. Em muitos momentos, os novos planos de Titanic podem remeter o espectador às características técnicas de filmes clássicos cujas ambientações pareciam às vezes estar avulsas aos personagens, isto é, que provavelmente foram filmados em estúdio e posteriormente aplicados em ambientes públicos e/ou outros, etc. Muitos dos novos planos de Titanic 3D tiveram objetos apenas transportados para frente e o ambiente de fundo levemente desfocado, como se buscasse transmitir maior profundidade. Contudo, o recorte mais transmite sensações de artificialidade (vide a questão do personagem e fundo avulsos) do que envolvimento com o espectador em si, mesmo que a trilha sonora esteja visceralmente impactante. A verdade é que acompanhar as peripécias desta trágica narrativa, com toda reflexão passível de ser encontrada, merecia mais crédito do que a queda do colar da Rose, pois tanto faz se ele passa perto ou longe do olhar do espectador, talvez compreender o filme em sua ideologia seja muito mais enriquecedor, além de indicar também que é possível um olhar crítico por trás do entretenimento.
Ao ser relançado na efervescência da globalização, Titanic em sua proposta ideológica reafirma ainda mais as contradições que sustenta o contexto social em que vivemos. Vejamos como e o que isso quer dizer. O roteiro de James Cameron tenta desenvolver paralelamente duas facetas do desastre Titanic, a realidade e a ficção. Sua forma de conjugar estes dois poderosos elos, profundamente entrelaçados, mostra-se incisivo na hora de guiar o olhar do espectador e fazê-lo concordar com a sua postura. Há de fictício o romance meio shakespeariano que evidencia o amor puro e desinteressado, cercado por ganância e entraves psicológicos e sociais, que gradualmente se descobre preso e impedido de realização, conforme o exterior também despedaça e culmina em nada senão tragédia. Pode parecer apenas poético, mas Cameron engenhosamente transforma figuras ilustres e ricas que estavam mesmo no navio, além das fofocas da época, em personagens cúmplices do romance do casal interpretado por Leonardo DiCaprio e Kate Winslet. Jack Dawson e Rose DeWitt Bukater são nomes que provavelmente não serão esquecidos, eternizados em seus personagens que ocupam classes distintas e são representados de maneira imagética e muito metafórica, em cenas (por exemplo) que Jack está em ambientes sujos com roupas pobres, ratos e – em contrapartida – Rose passeia por corredores com carpete, vestindo roupas de alta costura e cercada por elegância e joias. Trabalhando sem receios em cima de uma crítica faminta às futilidades burguesas, claramente alegorizando com o luxuoso navio em destruição uma sociedade aristocrática de méritos inatos decaindo e apresentando as suas fraquezas. Seguindo constantemente com comparações fortes e ideológicas a respeito de como a felicidade burguesa e aliciada ao bem material pode estar vazia e marcada por sofrimento, ante a terceira classe com sua sabedoria e passividade quase espiritual frente ao trágico, sendo feliz e conformada com pequenas coisas, como a festa do início que Jack ensina a Rose, denominando-a “festa de verdade”.
Em certos momentos, a linguagem cinematográfica realizada por Cameron consegue transpor com imagem e som argumentos como estes, guiando (claro!) o olhar do espectador. Por exemplo, quando o espectador conhece a personagem Rose, momento que é aliciado a uma narração que não só tenta expressar a situação psicológica do personagem como confirma este ponto de vista ideológico. A narração diz que Rose se sente carregada em correntes para a América com uma vontade de gritar que ninguém nota. O que é típico de personagens que já se introduzem numa condição de miséria existencial relativa ao contexto social apático, onde geralmente abre espaço forte para reviravolta. Exatamente no momento em que a personagem diz sentir vontade de gritar, acontece uma analogia de som e o navio solta um grande barulho com o intuito também de anunciar a partida do navio. Em outro momento particular, Rose briga com o noivo Cal Hockley e o mesmo derruba a mesa de café da manhã e sai, deixando Rose com a mão no peito, novamente inserindo a ideia de vida sufocada e infeliz. Logo após o plano do peito de Rose, temos um corte em que somos posteriormente levados a um quarto no qual a mãe de Rose aperta veemente o seu espartilho, proibindo-a de ver Jack novamente. É como se o filme indicasse simbolizando que a mãe de Rose também contribui com o fato da garota se sentir sufocada, pondo em suas costas o peso de sustentar a família com um casamento arranjado. O que pode remeter não apenas à famosa sequência de outro épico “...E o Vento Levou” (1939), mas também realizar uma analogia crítica interessante sobre como a implicação do meio social é usada paralelamente ao fato do navio estar naufragando. Tem ainda a cena excluída de que Rose teria saído do jantar e ido ao quarto para descansar, mas ao tentar retirar as roupas não conseguiria, ficando assim angustiada e mais estimulada ao suicídio. A cena é muito boa, Winslet coloca uma interpretação melancólica e emocionante, mostrando como a sua personagem se sente presa a valores sociais nos quais não acredita. Excluída do filme, esta que teria sido uma significativa sequência ficou para os extras, mas também corroboraria com o mesmo ponto de vista. Confira ela aqui:
Cena excluída de Rose, intitulada "Trapped"
Agora podemos tentar desvelar a questão de maior importância neste ponto de vista, a posição ideológica do filme quanto a práticas burguesas. Parece intrigante a forma como Titanic é recebido em seu contexto social, especialmente neste ano e com o relançamento em 3D. Como pode estabelecer tão claramente a distinção entre as classes econômicas, posicionando-se em relação as duas para desenvolver o ponto de vista que guia o espectador a desassociar valores de vida e riqueza material, se ao mesmo tempo reproduz práticas do capital? Como antes colocada, existe moral construída na engenhosa narrativa de James Cameron, onde o luxo da prática burguesa é associado a uma bem trajada miséria existencial, enquanto a terceira classe mesmo sem recursos vive com felicidade. No entanto, esta falsa ideologia transcende o filme se contradizendo. Levando em consideração que o filme voltou aos cinemas para recorrer a mais lucros, levado ao 3D para estabelecimentos que cobrarão em torno de 15 reais por ingresso, percebe-se já aí que o filme não se importa de não estar disponível igualmente a todos, e com isso terminar legitimando as práticas que desde o começo são direcionadas ao seu público. Quer mais? Parece que serão lançadas réplicas do colar de Rose para serem sorteados em combos àqueles que adquirem o que for demandado. Isso porque a personagem Rose diz que a joia é feia e pesada, imagina se não fosse. Então, como crer nos argumentos do filme sobre a felicidade a partir das coisas simples e dos sentimentos puros, desinteressados, se ele próprio contribui para a reprodução de valores opostos, particularmente capitalistas?
Gigantesco adereço promocional do filme, em Los Angeles.
Fotografado em 29 de Fevereiro, na Sunset Boulevard.
(Crédito: Daily Billboard)
Na forma com a qual o cinema norte-americano comercial vem se moldando, é difícil até levar esta questão tão a fundo, já que boa parte da produção atual está voltada essencialmente para a busca de emoção com urgência. Não é apenas em Titanic que esta contradição está presente. O espectador representado pelo conceito de Indústria Cultural é o indivíduo que vai ao cinema com um propósito que não é assistir a um filme difícil de ser digerido, mas o oposto disto. Procura-se sentir emoção com urgência, talvez para ocupar vazios ou consolar conflitos não-resolvidos, não se importando até com a banalização que vem acometendo os produtos culturais e fortalecendo cada vez mais o consumo massificado. No caso de Titanic 3D, encontraremos um filme que ainda traz no seu final o toque de otimismo do amor que transcende a tudo e todos, e embora mantenha orgulhosamente as suas falhas pela visão sociológica, merece reconhecimento por sua grande realização em cinematografia. O filme é grandioso, luxuoso e emocionante de se assistir mesmo sem óculos 3D. Sua narrativa vai continuar sendo um triunfo não apenas repleto de uma linguagem objetiva e segura de si, como também de valores morais convenientes. Cabe ao espectador interpretá-los e engendrar discussões conforme desejar, pois ao filme não falta exageros na mesma proporção que esbanja fascinantes questões de cunho sociológico.
Para concluir, sirvo a vocês uma última reflexão. Que não seja evitada em Titanic uma das verdadeiras metáforas do Cinema – o navio inteiro naufraga, mas quem desce primeiro é a classe inferior. E com ironia, quando um dos geniais coadjuvantes solta o seguinte enunciado....
Music to drown by. Now I know I'm in first class.
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