quinta-feira, dezembro 19, 2013

Bambi - Ela não nasceu mulher, tornou-se

Emblemática do corpo à alma, as primeiras palavras da protagonista biografada no documentário BAMBI (2013) de Sébastien Lifshitz eram sobre um sentimento de amargor inato ao seu nome de nascença Jean-Pierre. Daí, a partir de uma eficaz edição documental deste talentoso diretor francês, nós entendemos do que o filme se trata em poucos minutos. Marie-Pierre Pruvot narra a sua trajetória, nascida no dia 11 de novembro de 1935 em território argeliano ocupado pela França, ficou conhecida como uma das primeiras e mais suntuosas transexuais do mundo do espetáculo parisiense e um amuleto de sorte lhe batizaria Bambi, emblema de uma época carnavalesca que ela levaria consigo toda sua vida e mesmo depois de abandonar as artes cênicas para obter a graduação em literatura pela Sorbonne, formando-se educadora.


É notável o cuidado na pesquisa de Lifshitz pela maneira como a montagem valoriza a memória da biografada, trabalhando de forma sensível esta narrativa que se constrói em diversos níveis: a voz em off de Bambi descreve os detalhes de sua experiência enquanto indivíduo, mas temos ainda suas imagens caseiras gravadas em Super-8, as imagens do território argeliano na época e o material efetivamente produzido pelo diretor que consiste também em acompanhar a protagonista num retorno depois de anos às suas origens.


Bambi e suas colegas, no auge da noite parisiense.
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O resultado do documentário de apenas 58 minutos constrói uma rede entre estes elementos, mostrando que é possível desfrutar ao máximo de cada um graças à união dos mesmos, falamos aqui do prazer na montagem e do olhar documental de Lifshitz. A maneira com a qual o diretor expõe as dificuldades de sua personagem com uma câmera que parece assumir o papel de um cúmplice ou de alguém a qual toda confiança do mundo foi depositada para receber aquele convidado, tratando-lhe como ilustre. A sensibilidade de Sébastien Lifshitz aponta para os dramas de seus indivíduos de maneira subjetiva, mas não desvela explicitamente a palavra dos mesmos em julgamento. Seu olhar fortalece a figura de Marie-Pierre Pruvot, alguém que precisou ser forte, símbolo de resistência e criadora da própria mulher que se tornou para poder triunfar em meio a tantas barreiras impostas socialmente.


Cabaret Carrousel de Paris, '50s e '60s.

É mesmo o momento para dar uma nova leitura ao celebre enunciado de Simone de Beauvoir, em que ela diz num contexto específico que não se nasce mulher, o ser-mulher é algo que se torna. Imaginamos, principalmente, que esta emblemática construção tenha surgido num momento em que o gênero feminino era visto não apenas com uma perspectiva negativa, mas também de maneira que inserido na sua hierarquização social o significado do feminino dependia do masculino, a figura da mulher como um segundo sexo precisava estar metaforizada à égide de sua muleta, a figura masculina.

Num ato de femininismo, Simone de Beauvoir protesta contra esta imposição social de dependência da mulher, argumentando que por natureza somos dispostos das mesmas ferramentas para alcançar e, porém, aquele ser feminino e fragilizado por regras machistas constitui uma formulação a posteriori e senão mediada pelas rédeas sociais, mas jamais pela essência. Neste caso, o ser-mulher do seu enunciado seria exatamente algo a escapar. O caso de Bambi não está muito distante, ainda que a partir de outros âmbitos da sexualidade, pois está claro que por trás da sua composição enquanto indivíduo há a vontade de uma família que espera de seu filho um casamento heterossexual. Esta mesma sociedade que lhe exige a moeda do homem bem-sucedido com promessas em troca de felicidade duradoura, também coloca as barreiras àqueles que desejam recusar o seu sistema. 

No entanto, Bambi precisou construir um ser-mulher que lhe inspirasse a ter força para resistir à estas barreiras, uma figura do feminino contrária àquela proposta por Simone de Beauvoir, pois não seria a mulher dependente. Bambi tornou-se a mulher que exigiu o que para ela era o mínimo, poder viver e para isso era preciso trabalhar. Ela queria calçar os saltos altos a qualquer custo, uma escolha mais política do que estética, Bambi nunca aceitou ser um homem ocupado a ser travesti em horas vagas, como alguns dos seus colegas cujas identidades femininas eram adereços de espetáculo, pois a si mesma, via-se diante de um espelho, a feminilidade era a sua filosofia de vida e tornar-se mulher dependia de uma invenção. No esforço de realizar o seu sonho de se tornar mulher, ela deveria necessariamente tornar isso, aceitando todas as consequências sociais implicadas pelo ato.


Marie-Pierre Pruvot, escritora e educadora, 78 anos.

Tive o prazer ontem de poder assistir a uma exibição do documentário de Lifshitz, na presença da ilustre Bambi. Inestimável a oportunidade do bate-papo com ela após a sessão. Madame Pruvot gentilmente nos acolheu com algumas curiosidades a mais sobre sua vida, contou que gravou em torno de dez horas de entrevista para o diretor parisiense. Lembrando da sua trajetória com afeto, ela dizia como era difícil a vida na Argélia e o significado de ter assistido a um espetáculo do Carrousel de Paris ainda tão jovem que lhe fez angariar as forças para ir atrás daquilo, mesmo vindo mais tarde a sentir alguns arrependimentos do trajeto percorrido nos palcos. Foi naquele momento que tudo pareceu passível à realização e as imagens de Bambi se projetaram na tela, as emoções lhe tomaram ao lembrar-se de quando era um simples garoto que sonhava com um vestido vermelho, tudo que alcançou hoje e o fim da sessão celebrava este exemplo de vida.


"Bambi et moi", le 18 décembre 2013
Foto tirada na sessão Mundo.Doc
Cinéma Opéra, merci beaucoup!

Pour devenir femme,
il faut plus qu'être née.
Un hommage à
Marie-Pierre Pruvot